Um Natal diferente

O nascimento de uma nova galáxia tinha-me levado a apresentar a autoria de um novo projecto à divisão de conceptualistas. Não esperava uma recusa nem a directiva vinda da Gerousía do Conselho de Quadrante: tinham sido detectados por um novo Espreitador de Paralelos, num dos mundos sob a minha supervisão, vários erros à trajectória humanista traçada. A minha missão e dela dependia a concepção do novo projecto, consistia em inverter as tendências verificadas. Na posse dos dados, conclui, que o problema não era de concepção. Tudo não passava de uma questão desviante, uma neoplasia provocada pelo posterior nascimento de três luas no quadrante inferior que provocara uma alteração geoquímica, fazendo com que, a tecnologia que lhes fomos induzindo através da ciência, não os tivesse invadido apenas exteriormente mas também nos seus domínios interiores. Isto, que antes me parecera de somenos, obrigara-me a esta viagem para ordenar o vaivém dos seus actos, mesmo os mais medidos, mesmo os mais falhados.

No interior de uma casa de comida na baixa de Lisboa, observava através da divisória de vidro e protegido dos olhares apressados, a azáfama deste mundo sem compreender como podiam os humanos ser desprovidos da ventura de sentimentos solidários. Haviam-se transformado em neo-individualistas. Pensei na estratégia a adoptar para os reconduzir à trajectória inicial. Estávamos a poucos dias de celebrar uma importante data para eles, o natalis invicti solis, uma celebração de vida e humanidade que derivava do dies natalis solis invicti que havia sido traçada pela Gerousía, e não obstante os desvios verificados, continuavam a festejar. Observei também, que nem todos o faziam da mesma forma nem na mesma data e que muitos já não o celebravam, motivo adicional de preocupação. Todavia, a solução apresentava-se fácil e tinha alguns dias para preparar a indução de um mundo humanista. Esta faria com que vivessem na trajectória espectável da sua concepção.

O plano estava traçado, era tempo de apresentar os meus empenhos à Gerousía.

Sorri pensando no prazer agradável de conviver com eles estes dias. Tinham o hábito da comida e os aromas que sentia naquela casa, contribuíam decisivamente para querer permanecer mais algum tempo neste mundo. Talvez tivesse sido o que me levou a pensar na extensão do plano a que chamei de Neo-Natal e que consistia em doses massivas de auto-exames de consciência. A indução duraria até ao segundo dia do novo ano solar, depois seria retirada e os humanos regressariam ao seu estado habitual, todavia, com o lastro da memória desses dias. Queria assistir ao que fariam com ela.




(Foto – Contagem Regressiva de Steve Steigman)

A Janela do Pensamento - I


Chovia. No charme do ócio, encostada à janela desenhava traços sem nexo no vidro que recebia a sua respiração. Enquanto isso, ele, no abrigo da chaise-longue escondia-se. Observa-a.
Estava sozinha no dia em que completava vinte e dois invernos. A serenidade encontrada era visível no rosado das faces. Os cabelos negros, caídos sobre os ombros, ainda cheiravam a sais de banho de onde saíra antes de enfiar aquela camisola masculina sobre o corpo nu e, como sempre também acontecia, era com o já conhecido nó na garganta assaltada pelas recordações que esta lhe trazia.
Colocou a mão esquerda sobre o peito e acariciou-o com gestos suaves e cadenciados. O momento, contigente e volátil, era uma paisagem de enlevos.
Pela primeira vez ele mudou-se para uma posição que lhe dava maior visibilidade. Ela continuava absorta nos seus pensamentos, enquanto, como se de uma recomendação bíblica se tratasse, os traços celebrando os sentidos continuavam a sair do seu lânguido indicador para o interior embaciado da janela.
Mudou de posição dando as costas ao seu observador, que inicia então um avanço lento. Quase secreto. Sem vacilar. Sabendo que não seria visto e, pela primeira vez, ela repara que subconscientemente forçara o indicador a escrever um nome. Iluminou-se-lhe o rosto pela imparável percepção e não resistindo leu-o quase em grito: - RODOLFO!?
Assustado com o som inesperado, ele saltou para cima da livreira que ficava na parede fronteira à janela do quarto.
Encostando-se repentinamente à janela, ainda com a mão esquerda sobre o peito, disse: - Gato desgraçado, um dia acabas comigo!

A resposta que faltava ao Senhor Professor Paulo Borges



Meu caro, sei que é adepto da democracia de via reduzida, e que as faltas de respeito de trato com a sua elevada pessoa o incomodam, mas como sabe carece de resposta. Estamos no outono, é no outono que as folhas caem e é o outono que representa o fim dos dias bons.

Quando o meu caro disse, “Quem vier para agredir o seu espírito” referindo-se à Nova Águia “ou denegrir os seus mentores deve procurar outro lugar”, sabia bem que a questão não era a que apregoava, e a sua fuga para a frente, típica de quem se sente acossado, foi de uma enormidade inacreditável. Precisamente porque se sentia seguro e se desfrutava irresponsável. O que é, a bem dizer, um epifenómeno.
A questão, que você sabe e muitos de nós também, foi o que disse em artigos e nas caixas de comentários da Nova Águia (NA), contra a NA, os membros da NA e o Manifesto da NA acoitado sob a tal capa de fantasia como lhe ousou chamar, e o que foi dizendo, a la carte, deitando mão a truques trampolineiros e com a irresponsabilidade dos pantomineiros. Isso é que é grave, demasiado grave. Para quem? Para divertimento de quem? Para terapia de quem? Não sei. Sei que perdeu a noção do ridículo e seja onde for que isso aconteceu, também lá deve estar caída a sua honestidade intelectual.

O Paulo como bem sabe, revelou-se ao vivo uma surpreendente fraude, e num ambiente de hostilidade desbragada, espumando a sua frustração e ressabiamento, tentou limpar factos, números e argumentos, apagando os vitupérios que publicou acoitado sob o nome de Rasputine e expulsando com a maior prepotência os que consigo não concordavam e que o podiam denunciar. Sim, Paulo você deu-me a prova da causa mais funda do seu desespero e intermitente decadência actual, a prova de que o Paulo é o fantoche do Rasputine.

Compreendo que não seja adepto do contraditório objectivo mas o seja das confrarias do elogio mútuo: as “comadres” (que nome tão suave para o que elas perpetram) essa brigada de imbecis habitués que se julgam o centro do mundo e deles deriva a figura universal do Grande Acusador, mas acontece que, nem todos os que vivem no deserto são camelos, há excepções que não gostam de tipificações: nem das que reduzem um indivíduo a tipo predefinido, nem das outras que alargam a um vasto conjunto de indivíduos a atribuição de tipo.

O meu último conselho, vai no sentido de: quanto menos falar, menos se compromete, menos se queima e mais o respeitam. Nem que seja um corifeu perene e senil, um sacana de um canalha silencioso ou um aprendiz de Rasputine.

Por fim, para terminar e sobre a questão da minha e de outras prepotentes expulsões do blogue, o que estas expressam é pasto de infernos, são tão-só, vagas e imbecilizantes intenções de quem acredita que a sua idealite aguda é um estado de alma colectivo. Coisa que, amiúde, ataca os tiranetes e os seus minúsculos poderes.
O meu caro resiste a uma teoria da conspiração criada por si próprio? Grande mérito, sim senhor. Só falta que a criação lhe fuja das mãos, tipo Frankenstein. Não sei se bebe nem quero saber, mas sei que está embriagado de hipocrisia. Olhe, Paulo eu pintava-me de preto e saía fininho de cena, mas a sua ambição é de desmesurado tamanho, não é?

Das afecções perceptíveis à evidente ira (Ensaio)


O dia tinha começado mal e crescera pior ainda. De olhos semicerrados e o cérebro focalizado em blocos de memórias, dou por mim a percorrer as fases sobrepostas da vida distorcendo a lógica e diluindo-a na minha verdade, criando assim uma fenomenologia alimentada por esta base de informação. A função redentora da morte neste espaço-tempo não me traz equilíbrio, a razão não sabe lidar com aspectos duplos onde as sombras cogitam e percorrem movimentos de resposta que não impliquem estádios éticos.
Ponho de lado as violentas energias comprimidas de Tolstói in A Morte de Ivan Illitch e dou uma última puxada no Satisfaction de calibre 46 que abandono no cinzeiro sem apagar. Pego nas chaves do Bentley Continental GT e, já no carro, resolvo viajar até Lisboa e jantar no Pragma que, não sendo um restaurante sossegado devido aos concertos do Casino que inundam a sala, é elegante, discreto e tem uma filosofia gourmet que me agrada.

Entro, olho o candeeiro na entrada da autoria de Leo Marote e penso no que a existência tem a ver com percepção e contacto da forma. Acomodo-me na mesa que reservara pelo caminho e o Chefe aparece com o designado aperitivo do Chef: um delicioso bombom de chocolate recheado com foie gras e compota de cereja. A seguir sugeriu o amuse bouche: um palmier de tomate confitado e azeitona, com compota de legumes assados que desperta o apetite a qualquer um, acompanhado por uma espumante Herdade do Perdigão do Alentejo. Começava bem o jantar. Entre os pratos de peixe e carne, acompanhados por um branco Chardonnay do Chile e um tinto Campo Ardosa do Douro, surpreendo-me com a originalidade de um sorbet de líchias com pérolas de hortelã e termino contrariado com o coulant com gelado de after eight que apresentava um travo difícil de identificar. Com tão pouco se boicota uma refeição.

Enquanto espero pelo café, escuto as conversas nas mesas próximas. Numa delas, uma platinada de meia idade, dizia entre outras minudências, que o segredo da sua juventude era um sérum com ouro da La Prairie que descobrira quando visitou o Chelsea Flower Show, acrescentando com um sorriso hipócrita: – Felizmente, devido ao seu elevado preço, fora do alcance da gentinha. O seu acompanhante que tudo ouvia, tudo aceitava e que eu conhecia da Enoteca de Cascais, ao reparar que os observava, brindou-me um olhar que tentava mostrar que a sua posição ali não era tudo na vida. Numa outra, alguém dizia em tom irado, visível também na cor das suas faces, que desprezava expressões que fediam a presunção e comentava que a ira podia funcionar como uma máscara às deficiências mal emendadas. Concordo! Quantos não inventam ofensas só para se mostrarem indignados… é a parte maldosa do ser humano, a parte que julga sem ouvir ou pensar e trai confianças, destroça amizades e arrasa nações. Os primeiros impulsos da ira reclamam para si autoridade e a forma apressada, ou melhor, preguiçosa, como a construímos, pode acabar por destruir relações humanas e nos enganar a nós próprios. Sei que a ira é uma afecção temerária e poderosa, uma afecção que liquida qualquer fronteira ente a realidade e a ficção e se pode estender a um povo quando este não se dá ao trabalho de pensar.
A ira é uma loucura breve, mas dessa loucura onde poucos pensam o que se diz, advêm por vezes consequências que se perdem no tempo pela incapacidade de se descodificar, concatenar e raciocinar sobre ela num grau mais excelso que, implica ser coerente com um certo número de princípios e valores.

Preparo-me para sair quando oiço na mesa ao lado, a mesma de antes, alguém em voz alterada dizer que, a inteligência ou a razão não é independente da emoção. Viro-me na direcção da voz e encaro com dois olhos negros que me fitam como se algo de decisivo estivesse suspenso; dizem-me aqueles, saberem que eu ouvira o que fora dito e olham-me em desafio. Percebo que a detentora de tão belos corais negros está alterada. Ao seu lado, seguindo o seu olhar, uma sonsa, ansiosa, aguarda para ver se me espalho. Embora eu fosse de poucas falas dando a entender qualquer tipo de obstinação, não administrava o silêncio, gostava sim de conversas módicas sem utilização abundante de pormenores e, por isso, tendo o cuidado de me envolver em modos afáveis, sou directo ao dizer-lhe: - Também não pode ser independente dos nossos princípios e valores.
Não pretendendo continuar a interlocução, deixo a eloquência por ali e saio com um à vontade ditoso, embora apressado, não fosse a interlocutora que se preparava já para ripostar, perder a compostura, incapaz que estava de discernir sobre o que é justo e verdadeiro.

Abandono o Pragma e enquanto me dirijo ao parque de estacionamento, recordo-me das palavras de Aristóteles in Ética a Nicómaco, quando diz: “O que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado. Quem assim for é gentil, se é que a gentileza é uma disposição louvada. Porque o gentil quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece pecar mais por defeito, porque não é do tipo vingativo mas mais do género que perdoa.” Também, Francis Bacon in Da Cólera, identifica formas de controlar e temperar os hábitos adquiridos para nos encolerizarmos, dando-nos soluções para os evitar, provocar ou apaziguar.

Sorrio ao pensar que me livrara a tempo de algum elemento circunstancial e excessivo envolvido na ira que pairava naquela mesa, sabia que o debate já não conseguiria ser limpo e isento, pois, convencido sou, que a ira é uma força reactiva, o elemento desordenador de algo que ulcerou o espirito; tem sempre uma razão, mas raramente boa, pois, revela-se tanto na dificuldade de obter um bem como de superar um mal e, para a combater, devemos conservar o domínio de nós, como dizia Séneca nas suas Cartas a Lucílio.

Entro no carro e acendo um Gotham Selection No.65 no qual dou duas fortes puxadas, sinto então, finalmente, o jantar terminado. Já no regresso, lembro-me do ensaio que a Maria me pedira e ao qual tinha torcido o nariz naquele jantar de sardinha assada no Torremar em Oeiras, acrescentado que, a minha especialidade, se alguma tinha, eram os contos.


(Publicado na Revista Inútil)

O menino, a mãe e o gene auto-destrutivo.


Um dia quando o céu já era azul e o orvalho da noite ainda se notava, o menino de forma audível e convicção inabalável, disse à mãe que não a amava.
A mãe tropeçando no ar sério do menino, sentiu aquelas palavras como pedras nas mãos de fadas caprichosas e a partir desse dia chorou, chorou, chorou…
Já cansado de tanto a ver chorar e intuindo a sua fraqueza, foi com olhar faiscante e uma vibração quase imperceptível, que o menino disse que não gostava mais dela.
E a mãe julgando-se de parcos méritos; chorou, chorou, chorou ainda mais, muito mais e de forma que parecia torrencial.
Outro dia, o menino surdo à sua dor, disse-lhe estar muito zangado por ela não parar de chorar.
A partir desse dia e em silêncio, tanto mais embaraçoso quanto mais se prolongava, a mãe chorou, chorou e chorou para si, para dentro e no silêncio das facas.
Finalmente, o menino, com trejeitos corporais de gente enfastiada, disse em tom de impune ameaça, que por ela andar sempre tão triste a odiava.
A mãe do menino olhou-o, olhou-se dentro de si e sentiu a inquietação e o receio… e de forma plena, quase sublime, com a mão puxada da alma ébria de lucidez, deu-lhe uma enorme bofetada. Tão grande, tão grande, mas tão grande, que o menino ficou com a face toda inchada.
A partir desse dia a mãe do menino nunca mais chorou, e o menino descobriu que para além de um enorme carinho, a amava desveladamente, em cada dia de céu azul, em cada noite de orvalho.

O Sonho da Maria!


Regressara do carro onde esquecera o telemóvel. Aproximou-se, olhou-o com ar recriminador, mas contendo-se nada disse.
Ele, enquanto acendia um charuto e se recostava na cadeira, disfarçadamente limpava um resto de açúcar que se lhe alojara no canto da boca. Roubara-lhe o sonho... aquele sonho era de facto bonito, belo demais para que ela se não lembrasse, agora nada havia a fazer.

Quinze anos depois, no mesmo restaurante de Lisboa....

Estava intrigada com o cliente da mesa ao lado, não percebia o apetite obsceno que o levava a devorar a última dúzia dos belos sonhos do Chefe Pedro. Por causa dele, nem um tinha sobrado e perguntava-se: - porquê, santo Deus, porque tenho de me contentar com uns simples brigadeiros enquanto aquele psicopata de cérebro liso se empanturra com a especialidade do Chefe?
Assim que a oportunidade surgiu, fez sinal ao gerente para que se aproximasse e de imediato inquiriu-o sobre a presença insólita de tal personagem. Depois de uma breve conversa, ficou a saber que tinha sido um homem importante e um bom cliente da casa, mas alguns desaires na vida tinham-lhe afectado os negócios e tinham-no atirado para aquela situação. Hoje, ao vê-lo no banco do jardim em frente, depois de uma breve conversa, resolvera matar-lhe a fome com aquilo que ele mais gostava; os sonhos do Chefe Pedro que ele não dispensava sempre que antes ali almoçava.

Na posse de tal informação, observou atentamente o homem; verificou que os cabelos em desalinho apresentavam grandes madeixas brancas, rondaria os cinquenta e cinco anos e, por baixo das sujas barbas por fazer, notava-se algo do que tinha sido.
Sentiu-se obrigada a acercar-se da mesa daquele homem, a mesma força que a obrigara naquele dia a entrar naquele restaurante, voltara. Aproximou-se e sentou-se na cadeira vaga em frente do homem que desinteressado a olhou continuando a comer os sonhos que restavam, mas no breve momento em que trocaram olhares, uma insustentável e dilacerante recordação fê-la estremecer: eram os mesmos olhos, agora baços e sem a vivacidade de outrora, mas eram eles, aqueles a quem durante anos dedicou insultos a cada parágrafo de pensamento, ali estavam agora no rosto do culpado dos tempos perdidos e dos sonhos por realizar.

Maria pegou no garfo de sobremesa que estava à direita do indivíduo, este lançou-lhe um breve olhar enquanto a sua mão se aproximou do último sonho, Maria num golpe rápido e cru, cravou-lho com toda a força fazendo com que a mão direita ficasse pregada na mesa. Com um grito lancinante a subir-lhe na garganta, o homem olhou-a. É ela!... lembrou-se num caleidoscópio de emoções enquanto combatia o grito de dor que espreitava, aquela mulher de rosto amargo e duro era a memória de um tempo. Viu-a com os olhos pregados nos seus pegar no último sonho e levá-lo à boca. A sua memória tornou ao dia em que lho tinha roubado e à noite em que, entre as paredes do escritório e contra a sua vontade, lhe destruíra o pequeno mundo.
Soubera depois que a Maria tinha sido internada num hospital, e isso, com as consequências que então advieram, afectaram-no para além do imaginável.

Viu-a largar finalmente o cabo do garfo e levar a mão à boca para retirar uns restos de açúcar que ali tinham ficado. Quando, finalmente, o grito contido se apossou da garganta, já Maria transpunha a porta do Restaurante.

A Arte da Viagem.


Vamos fazer uma história? Perguntou com aparente despropósito enquanto olhava o quadro. Era useira e vezeira nestes pedidos tão inocentes como a frescura das manhãs. Bastava que algo lhe remexesse o subconsciente para o seu anti-racionalismo se manifestar e começar a deambular pela fértil árvore da imaginação.
Eu sabia que ela esperava e sabia o motivo do pedido: aquele quadro de Madoz que muitos veriam com a costumeira e providencial simplicidade de quem não ousa imaginar, não era o seu caso. Tinha pela vida um ávido interesse e via sempre mais, muito mais. Via significações simbólicas, metáforas e imagens onde outros não passavam da primeira e impenetrável camada brilhante. Vivia intensamente as sensações sem nunca achar que a vida era bastante, como se não soubesse ser outra coisa.
Lembrei-me de uma conversa há dias atrás acerca da arte contemporânea e da discussão que hoje se faz sobre a espontaneidade necessária e, agora, aqui estava a admirar a obra deste artista espanhol que dizia a propósito, só lhe interessar a técnica enquanto lhe permitisse obter os resultados desejados.Também ele era fértil em simbolismos estéticos e por isso a sua exposição, aqui na Galérie Fréderic Bazile, em Montpellier, era de um refinado humor surreal que punha à prova a magia da nossa psique, a magia que fascina os poetas e os leitores de poesia.

Bem… ela esperava, e a melhor maneira de viajar é partir e sentir!
Peguei-lhe na mão e dirigimo-nos ao banco em frente da fotografia de um relógio com uma correia que a imaginação simulava já ser uma linha férrea. Aquela imagem já não era física, era alma. Ela já não era corpo, era aura a planar sobre o momento.
Antes de nos sentarmos disse-lhe: - Chegámos a tempo, o comboio estava quase a partir e a manhã está a raiar. Vamos largar por aí fora!
Ela então, soleníssima, olhou-me e disse: - Pai… tens a certeza que este é o comboio do Tua? Pisquei-lhe o olho em sinal afirmativo e coloquei o dedo na boca como que a pedir respeito. Recostou-se no banco. Do seu ponto de partida olhava de sentimento distraído o quadro, quando, quebrando o impenetrável silêncio disse com um sorriso deliciado: - Que bom… adoro a paisagem do Douro…
Também eu… pensei com uma oculta e absurda vontade de soluçar.
…Perde-te, transcende-te minha filha… a meio caminho viajaremos pelos campos extensos do tempo da minha infância. O preço do sonho é a vida.

O Sem Abrigo


Demos de caras no virar da esquina e assustei-me sem saber se havia motivo. Era alto, magro e envelhecido pela pobreza visível nas mãos inchadas das frieiras e nos lábios gretados pelo cieiro. Olhou-me. Primeiro com cara de poucos amigos, mas ao ver-me assustado depressa mostrou um sorriso tranquilizador. Compreendi que a carantonha inicial com que me tinha brindado se destinava a afastar possíveis e inesperados inimigos. Reparei, olhando-o agora mais calmo, que nos braços e na cara as impigens abriam feridas, eram as feridas da pobreza que o marcavam e marcam muitos sem-abrigo nos Invernos rigorosos.
Perguntei-lhe sem grande convicção se precisava de ajuda. Ele tirando a boina suja e safada do muito uso, abanou a cabeça num movimento concordante. Arrependi-me de imediato ao ver-lhe grandes peladas na cabeça e a visão da dentadura negra e desfalcada com que me brindou.Ele avançou um passo e eu recuei um outro, ele então recuou mas eu não avancei, estava bem assim. Naquela confortável distância lancei-lhe algo contrariado a pergunta: - E precisas do quê? Ele olhou-me de novo sem falar e com a mão que antes tinha no bolso do casaco fez um gesto que entendi como um vai-te lixar.
Compreendi que o meu recuo anterior, embora instintivo e talvez por isso, lhe tinha transmitido a mensagem errada do que eu era. Eu simplesmente não esperava aquela situação, não estava preparado, tinha sido apanhado de surpresa. Quem se julgava aquele esfarrapado sujo e doente para me julgar a mim? Recuou nos passos mas um pouco de recuo nos gestos não lhe faria mal algum.
Dispus-me a sair dali e ataquei a intenção em passo rápido quando, ele num sinal de dedos me pediu um cigarro. Naquele momento e pela primeira vez tive pena de não ser fumador, não era, em consequência não tinha cigarros. Ele com novo gesto de mão despachou-me como se dissesse que não era ali desejado.

No dia seguinte voltei. Vinha preparado com um maço de Marlboro no bolso e estava desejoso de ver a cara dele quando lho mostrasse. Agora que já lhe podia dar alguma coisa queria ver se me mandava lixar.
Procurei-o sem resultado, vi nas ruas por perto se lhe encontrava sinal mas nada, devia andar por outros sítios, pensei. Convenci-me que voltaria por ali e nos três dias seguintes voltei com o maço de cigarros no bolso, mas tinha desaparecido.
Finalmente, ao quarto dia, avistei-o ainda ao longe. Estuguei o passo sempre com o olhar a vigiá-lo não fosse ele desaparecer mais uma vez e aproximei-me. Quando se virou vi que não era o mesmo, este era mais novo e sem os sinais de doença do outro, era também mais forte e mais agradável. Olhou-me e sorriu de imediato dando as boas-noites. Aproximei-me ensaiando um sorriso e sempre preocupado em não demonstrar receio. Então, quando estávamos à distância de um braço, cumprimentei-o e estendi-lhe a mão com os cigarros. Ele com o gesto de os aceitar, agarrou-me o braço e desferiu-me um violento soco bem no meio da cara.
A pancada foi tal que fiquei um bom bocado atordoado, devia ter-me partido o nariz, pensei meio zonzo e com dores enquanto o agressor aproveitava para me aliviar da carteira e outros pertences. Felizmente um grupo de Skin Heads que descia do Bairro Alto, ao verem o que se passava, puseram o agressor em fuga seguindo-o em grande correria na direcção do Cais do Sodré. Após os ver desaparecer e ter recuperado a serenidade necessária, desloquei-me com alguma dificuldade à esquadra da zona com o propósito de receber os primeiros socorros e, principalmente, para apresentar queixa devido aos documentos que o agressor levara consigo. Um dos agentes quis vir comigo ao local e apercebi-me que se passava mais alguma coisa quando me pediu para no dia seguinte me apresentar na Judiciária.
Depois de uma longa conversa com o agente destacado para o caso, fiquei a saber que o larápio agressor do dia anterior era suspeito de ter morto um sem abrigo. Os indícios apontavam para a possibilidade de ser o mesmo que procurei.
Ao ver que a informação me abalara disse-me que os familiares do homem vinham a caminho para a identificação, mas era necessária também a minha confirmação de que era aquele homem que eu procurara e que tinha visto naquela noite. Movido pela curiosidade acedi deslocar-me com um agente à morgue para a necessária identificação.
Acabados de chegar fomos informados que o irmão do sem abrigo já o tinha identificado. Dirigimo-nos à sala onde estava o cadáver e ao transpor a porta dou de caras com o meu pai que, lavado em lágrimas, me olhou surpreendido.Atónito, instantes depois e pela sua boca, fiquei a saber que aquele sem abrigo era seu irmão, portanto meu tio. O tio mudo desaparecido e de quem eu ouvia falar desde que me lembrava.
Fazia dezoito anos que nunca mais soubéramos dele, agora, devido a um papel encontrado no bolso do casaco onde alguém tinha escrito que ele era o José Emanuel Laranjeira e que procurava o irmão António Leonardo Laranjeira tinha sido identificado.
Quando interiorizei a informação, já sabia que era essa a ajuda que ele queria. Ao avançar para mim preparava-se para me mostrar o papel, e eu, seu sobrinho, tinha recuado com medo.
Instantes depois compreendi finalmente que não era medo. Era algo pior, mais profundo e enraizado, era um mal de alma.

Sub-coisas ou (vá lá) contos de leitura rápida.


Segundo ela, ele era um medíocre tuga, xico esperto.

Banqueteava-se enquanto ela não parava de o criticar devido à sua propensão para o dislate. Quando azedava, instintivamente, brindava-o com o seu jeito para a associação de expressões, e foi com um sorriso meio trocista meio insolente que lhe pediu o galheteiro.
Ele, conhecendo-a, não resistiu a comentar que os sons polifónicos o incomodavam.
Tudo isto, instantes antes, da faca da carne ter aterrado no seu peito.


Te(n)são. (ou a forma de deslocar o protagonismo para o titulo)


Chovia. Olhavam-se olhos adentro e sabiam que a tensão rapidamente subiria. Quando a mão dele se moveu na sua direcção, já ela se encaminhava para o quarto.

Caminhantes do Apocalíptico


Sentia-se profundamente satisfeita, olhava-se dentro de si e via-se calma, isso era de tal forma reconfortante que só lhe apetecia ficar ali deitada, naquela lassidão dormente com o pensamento a deambular pelo que ocorrera há pouco. Olhou o relógio e verificou que tinha passado uma boa meia hora desde que ele a deixara, sorriu e tentou memorizar cada momento com receio de os perder. Coisa inaudita, procurava nos esconsos da mente cada segundo, cada êxtase, cada vez que se viera. Quantas teriam sido?… Só sabia que fora um verdadeiro apocalipse. Tinha fodido com muitos gajos e gajas, mas como aquele não, aquele era único, proporcionara-lhe momentos que nunca pensou serem possíveis de atingir. Sob aquele aspecto gótico, escondia-se um luxuriante rei do sexo, um mestre que o servia com entendimento.

Com passos lentos caminhou na direcção das vozes bem dispostas e enquanto se aproximava, embora procurasse mostrar-se desinteressada marcando posição de que o ali não era tudo na vida, o pensamento não despregava da visão daquele macho exemplar.
Entrou e verificou que os três já lá estavam, tinham o charme do ócio e conversavam sobre um filme qualquer até darem pela sua presença. Calaram-se então e olharam-na inquiridores e expectantes…
Mostrou-lhes um sorriso denunciador que os fez cumprimentarem-se e motivou a abertura de nova garrafa de champanhe, enquanto Helen, atenta ao que se passava, subia o volume da música. Nunca até hoje, Van Der Graaf Generator, lhe parecera merecedor de atenção.
O marido aproximou-se com um sorriso rasgado e confidenciou-lhe: –Cheguei a pensar que não te querias juntar a nós, começava a ficar preocupado. Sorriu-lhe com brandura e deixou-se conduzir até ao sofá central onde Juvenal a esperava com uma taça de liquido borbulhante.

Chegaram a casa já noite cerrada e pela primeira vez dirigiu-se ao marido: –Então, que achaste da Helen? –Fabulosa! Respondeu-lhe João antes de poder atinar com um tom para voz, acrescentando: –Uma mulher extremamente fogosa, algo tímida no início, mas quando se libertou foi uma experiência fantástica, sem dúvida a melhor parceira desde que nos iniciámos, e saber que esta era a primeira vez deles deixa antever encontros inigualáveis no futuro, talvez os convençamos noutra ocasião a fazermos uma sessão a quatro. E tu, que dizes do Juvenal? –O mesmo que tu da Helen, começou aparentemente com alguns cuidados, mas com o meu incentivo rapidamente se descontraiu fazendo-me ir às nuvens várias vezes, o gajo é excepcionalmente dotado. –Mais do que eu? Perguntou João. –Não me referia a isso, embora o seja uns bons cinco centímetros, respondeu como se falasse do que calhasse, afável mas sem reservas, e continuou, mas não é isso, é a forma como os usa e usa todo o seu corpo, é a forma como ele gosta de mulheres… não esteve ali só a meter-mo, longe disso, ele deu-me o melhor sexo que alguma vez tive.
Ao ver que João tinha parado, com algum resíduo de surpresa pensou que talvez tivesse falado demais, mas a relação deles sempre tinha sido muita aberta e, como bons swingers, sempre falavam do desempenho dos seus parceiros abertamente, sentindo-se privilegiados por terem conseguido ultrapassar todas as barreiras e todos os tabus desta sociedade acanhada e hipócrita, além de que, desde que começaram a swingar, a relação entre eles tinha melhorado imenso e por isso perguntou-lhe: –Que se passa, parece-me que ficaste contrariado com o elogio que fiz ao Juvenal?… – Não, não foi o elogio em si, foi a forma, o jeito e o brilho nos olhos com que o fizeste, nunca te tinha visto elogiar assim nenhum swinger, nem ninguém, dá ideia que desta vez te envolveste de forma diferente.
– E então?… devias ficar satisfeito por finalmente ter encontrado um parceiro que me satisfaz plenamente, coisa que já aconteceu contigo e pelo que me disseste, a Helen, também não se saiu nada mal, pois, dizes que foi a melhor até agora, assim, só pode ter sido excepcional.

João compreendeu as razões de Marta, mas havia qualquer coisa na forma como tinha elogiado o Juvenal, que ultrapassava os limites do usual, via que ela estava diferente por comparação a todas as outras vezes em que depois de se despedirem se distanciavam mentalmente dos parceiros até novo encontro, desta vez não e isso era evidente, evidente até demais, já que, Marta, não parecia desejá-lo junto a si, parecia satisfeita, e ao contrário do que era costume hoje parecia não precisar das suas carícias e de saber que ele ainda a amava, por isso ficou a remoer por alguns instantes em tudo o que se tinha passado. Lembrava-se que quando aceitou a taça de champanhe das mãos do Juvenal, esta lhe ter acariciado a mão e os olhares se terem fixado demoradamente a ponto de Marta enrubescer, ele tinha levado isso em conta de alguma timidez que ela por vezes ainda revelava, mas via agora que não, não era timidez, havia ali algo mais.

Marta não dava conta dos pensamentos do João revelados no silêncio preocupado, os seus pensamentos navegavam já em outras águas. A recordação dos momentos com Juvenal era muito intensa, de tal forma que parecia senti-lo ainda dentro dela… as suas enormes mãos a apalpar-lhe as mamas enquanto uma língua bem treinada a penetrava com carícias suaves intercaladas de explorações mais viris. Gostou especialmente quando ele a comeu por trás sem nunca ter deixado de a massajar.
Estes pensamentos foram suficientes para se sentir de novo molhada, o que a fez sair daquele estado com um pequeno grito sobressaltado ao verificar que o João estava plantado à sua frente a olhá-la e os seus olhos eram reveladores do que sentia, tinha percebido o seu abandono aos pensamentos e tinha constatado o desejo a dominá-la.

Quando falou, espumando raivas de certezas abaladas, atirou com os infinitos de forma bem audível: –Acabou! Não o vês mais!
Marta sentiu um choque dentro de si e o sangue a percorrer-lhe todo o corpo, a sua cara estava agora afogueada. Olhou em desnorteio para o João e chispando centelhas de ódio e raiva, gritou-lhe: –Não te atrevas, meu cabrão de merda! João levantou a mão com intenção de lhe dar um estalo que não chegou a surgir, alguém lhe agarrara o braço com uma força tremenda travando-lhe ali a eloquência do gesto. Espantado, olhou-o, enquanto tentava libertar-se… que faria ali o Juvenal armado em puritano castigador dos seus desbragamentos?…
Este tinha um sorriso trocista quando falou: –Sabes João, não te canses porque nunca irás perceber o vaivém do palco dos nossos actos, o essencial escapou-te. Naquele momento fitaram-se como se algo decisivo estivesse suspenso. Segundos depois ele disse: –Lembras-te do acordo que assinámos no nosso encontro de conhecimento? João lembrava-se, mas não via que interesse poderia ter aquele documento no caso, aquilo era coisa de parcos méritos, não passava, ao que lhe pareceu, de desenhos confusos e só o assinou por eles terem sido irredutíveis. Aliás, ele assinaria qualquer coisa para comer uma mulher com a Helen.
Juvenal, olhava-o agora de cima dos seus dois metros de altura que lhe pareciam o dobro devido à posição que a torção de braço o obrigara a tomar e movimentara todos os seus alertas. Começou a ter receio daquele homem antes afável e de extrema simpatia.
Com um sorriso algo irónico, Juvenal, falou com uma voz sibilosa que o arrepiou: –Somos fragmentos do Uno Mal’ak, enviados do espaço-tempo pela Mãe Impronunciável com a missão de desviar braços dos Anjos da Esfera Eterna para a Celestial ordem Luciferária, e Ela, construiu com o seu desejo iniciático uma ponte entre o espaço-tempo.
João não sabia o que pensar, aquilo tinha algo de satânico e diabólico, os seus olhos seguiam agora Marta que se aproximava de Helen e que só agora percebera no fundo da sala. Sentiu que não dominava a situação porque não a percebia e porque era obrigado por aquele braço de ferro a ajoelhar de tal forma que a sua face esquerda estava espalmada no chão.
Por fim, Juvenal, disse: –Tu ficas, sabemos das tuas qualidades como preparador de almas neste decaído mundo, terás o usufruto da tua estulta impostura, mas serás a Minha Palavra!

O Momento...


Não o tinha premeditado, surgira num repente quando inconsciente abriu a gaveta das facas. É desta!… pensou enquanto mordia o lábio inferior.
Ouviu vinda do quarto a voz do Manuel que gritava: - Então Marilú, é p’ra hoje? E pensou com os seus botões: ai não que não é, é já! A sua mão direita num gesto continuo e repentino agarrou as facas em molho enquanto a esquerda, num movimento único, se apoderou das chaves.
Quando franqueava a porta gritou na direcção do quarto: - Man’el, venho já! Vou ver s'ainda agarro o amolador.

Outros caminhos na dulcíssima distância dos hábitos.


Caminhava com o ritmo marcado, não se lembrava de onde vinha nem lhe eram claras as cores essenciais, mas isso não parecia incomodá-lo por mais irónica que lhe parecesse a distanciação com que encarava o facto.
Era um homem de baixa estatura, de aparência um pouco míope e uma pequena calvície na fronte, vestia fato completo azul-escuro, camisa branca e uma gravata azul ciano. Os sapatos reluziam avassaladores do polimento e, estranhamente, sem uma dor digna de nota, não conseguia deixar de arrastar o pé direito sempre que dava um passo. Essa era a única preocupação denunciada pelas rugas ligeiras em ambas as faces e pelo facto de há muito não se sentir tão bem; aquelas malditas articulações que o apoquentavam há anos hoje não davam sinal, só aquele arrastar do pé que teimava em marcar o ritmo e a dormência do braço do mesmo lado lhe desviavam o pensamento do objectivo da caminhada.

Quando vislumbrou o sopé do monte que se tinha descoberto aos poucos, sorriu pensando que o objectivo estava próximo, ali mesmo à sua frente. Sentia-se bem para encarar a subida até à oliveira que teimosamente decidira medrar naquele cume inóspito longe do ondular secreto das planícies.
Finalmente chegou, há muito que ali não ia mas verificou com satisfação que tudo estava na mesma; a oliveira e o mato rasteiro dobrados pela voz do vento agreste de norte, teimavam em ali permanecer.

Olhava à sua volta quando viu o Carriço assomar por detrás da raquítica oliveira e caminhar na sua direcção de rabo a abanar em sinal de contentamento. Logrou ter visto gotas de água nos seus olhos imediatamente antes de este lhe saltar para os braços quase o fazendo cair.
Quando conseguiu que parasse de lhe lamber a cara e o acalmou, reparou que a trela de corrente estava pendurada na oliveira. O Carriço percebendo de imediato a intenção, de rabo a abanar colocou-se em posição para que o dono o prendesse.
Finalmente, quando estavam prontos para a partida, sem qualquer lamento entendeu o motivo da caminhada: algo lhe dissera que o Carriço o esperava naquele local onde no ano passado o havia enterrado. Não quisera partir sem o dono, esperara por ele, pelo seu tempo, e naquela tarde de Outono, um raio de sol estival que pareceu absorver a liquidez das rochas uniu-os como frutos da mesma árvore.

Só os idiotas são verdadeiramente inocentes. Já o dizia Pamuk.

Acordo, e ainda em torpor, com delicada cadência leio no número dois da “Ler e Depois” do passado Janeiro, uma entrevista a João do Nascimento que editou na Portugália o “escrever enquanto todos dormem”, prefaciado por Valter Hugo Mãe que nos chama desde logo a atenção para a perplexidade de não encontrarmos neste livro as maiúsculas da praxe e que, iremos também encontrar uns hífens metidos-entre-palavras onde nunca os viramos antes. Até aqui nada de anormal e nenhuma compulsão na assunção de opinião me ataca e estou até disposto a concordar com esta ordem de pensamento mesmo não sendo a minha. Mas já estranho que (coisa para me dar motivos para rir não fosse o torpor instalado), logo no inicio da entrevista, à pergunta sobre o atrevimento de ignorar as regras da pontuação escrevendo em minúsculas e utilizando o hífen para ligar palavras onde ele não existe, responda o João do Nascimento, que: “…advém da evolução natural e, simultaneamente, trabalhada, de um estilo que ambiciono próprio…”.

Ora, com a devida respeitabilidade e seriedade que o portuguesinho gosta, uma coisa é certa; o João do Nascimento que deve ser pessoa de vários enlevos e que adora o seu universo, a continuar nessa linha de raciocínio nunca irá encontrar o tal estilo próprio que ambiciona, aliás, o Valter Hugo Mãe bem lho podia ter dito já que, em prefácio num outro livro que agora não recordo o titulo e me falta a paciência para procurar, fala da originalidade do ponto e da escrita em minúsculas, que usa, e de ele próprio ter sido também vitima dessa estranheza, pois, assim, escusava o João do Nascimento de incorrer no desagrado de pretender ter o que nunca foi dado para adopção, embora ande por aí nas mãos de bons e maus escritores e, nalguns casos, de forma tão desajustada que mais parece uma espécie de alquimia da montagem ou um quadro de tensão doméstica.

Para um entendimento saudável, embora amargo do que acabo de dizer, e porque nomear valoriza, universaliza e cria um espelho onde outros se podem mirar, importa dizer que, este “estilo”, que adquiriu uma particularidade vagamente nómada que está na génese e no desenvolvimento de algumas discussões e que já passou pelas casas de Al Berto, Herberto Helder, Gabriela Llansol, etc, aparece em 1981 (hélas, a coisa é contrariada pelos factos. (e pela física dos materiais.)), em conjunto com o travessão entre palavras e no fim de frases (que mais tarde se viria a estender), no primeiro livro de poesia da mesma autora do ecléctico e expositivo livro de contos, “a mais loura de lisboa” editado pela Difel (vá, respirar fundo, um, dois, três, expirar devagar…), e, sobre o assunto dizia então em 1984, David Mourão Ferreira depois de se referir à riqueza imaginística e à variedade de ritmos da autora:

…importa igualmente sublinhar como essas virtudes se vêem aqui «servidas» pelo próprio processo de pontuação adoptado pela autora – ­processo que não constitui, de modo algum, como por vezes acontece em outros escritores novos, um simples tique de expressão ou um mero maneirismo gráfico, antes o modo muito adequado de sugerir, na teia criada pela «corrente da consciência» a partir de certos instantes, que o ponto final representa apenas uma pausa provisória e que a minúscula que se lhe segue mais não faz que retomar o fluxo daquela corrente…”.

Ora, perante tal categorizada opinião, restará talvez aos escritores serem eles próprios na sua inteireza e não meros re.fazedores do "inédito" já feito, pois, nada mais fazem que tactear na escuridão.

Nota final para os impolutos avessos à critica e que reduzem quem a faz a um tipo predefinido de indivíduos:

E Jesus disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado.
Marcos, 15-16.

A Alá pertencem Oriente e Ocidente.
Alcorão, A Vaca, 19.

Para os que engolem antes de provar


Escreveram-me dois seres indignados; um orangotango e um babuíno, cujas respectivas orientações sexuais não tenho o prazer de conhecer e descarregaram a bílis; primeiro no meu e-mail e depois na caixa de comentários que felizmente está protegida contra ameaças à saúde pública.
No entanto, acredito, que por detrás de supostos estatutos morais, éticos, filosóficos, etc., produzidos pela medula destes caridosos seres despeitados e desnutridos de qualquer materialismo dialéctico, está um respeito sincero (razão da atenção dispensada à humildade de génio e superioridade magnânima do autor deste post) que considero ser necessário alimentar em vez de destruir.
Sei que, vivemos tempos moralmente dissolutos, tempos em que é urgente resgatar uma certa corrente filosófica que dá relevância primordial ao que, em cada sociedade ou civilização, se herdou do passado como hábitos e procedimentos razoáveis, e é nessa conformidade que todos merecem a oportunidade de se retractarem de forma a harmonizar na medida do possível os valores em causa.
Sabemos que há uma fracção da "população que se destingue" por carregar as malas dos outros, mas, estes seres, muito embora de sociologia simples, estão longe de se constituir como uma entidade sociologicamente coerente, são, antes, um grupo profundamente perdido numa fronteira inusitamente clara: como não são grandes máquinas na prudência e cálculo das consequências das suas acções, abocanham competências para que não estão preparados devido à sua herança genética, ou seja, a sua cultura é o reflexo de meia dúzia de idas ao café onde, entre bagaços, adquirem dotes para tudo o que é mesquinho e reles na lógica das velhacas traicõezinhas para abrilhantar o ego, próprias de quem não tem coluna vertebral.

Sei que ainda tinha em mente mais uma palavrinha ou outra para este grupo de seres que coça os testículos enquanto conversa com alguém, mas por agora só me recordo da dos filhos da puta, fica, pois, para outra ocasião.

Entrada posterior: A Alice Macedo Campos, voltou e está AQUI.

O primeiro é com mel de rosmaninho

Chove na minha rua, olho através dos pingos que escorrem na janela donde espreito o dia e hesito na intenção de me vestir e sair. Hoje a indulgência não anda por aqui, talvez por isso, de pensamento vagabundo e uma módica ponta de ironia, mando bugiar o tempo já que está tempo para isso… sem pormenores, sem banalidades, sem precisar fazer sair a fala não se vá esta espojar nas costumeiras expressões indelicadas onde só se atiram as frases.
Assim, de forma irrepreensivelmente irrepreensível, papo um, dois, três noticiários… ouço alguns democratas do champanhe e caviar ideológico, avessos a análises desapaixonadas e despartirizadas, proferirem nas suas brincadeiras opiniáticas tantos e absolutos imperativos categóricos que já não respondem às múltiplas situações dilemáticas que surgem, que me dão vontade de os correr a varapau… que corjazinha… que caquinha esta que nos tenta enfiar o garruço… que rico novo ano que não se abre à análise e avaliação de contextos… veio parecido com a modorra que tomou conta do país em tempo de self-fulfilling prophecies… mudam as moscas mas a dimensão da alma humana continua igual, nada de tolerância no edifício atraente que é livrinho dos pascácios…
Para quando a regeneração?… Para quando uma ética de responsabilidade solidária?…
Que filho-da-puta de tempo este o tempo de se tirar o chapéu aos taralhoucos irreverentes e malcriados e aos eruditos dos bons princípios e gorduras democráticas donos de muita asneira de porte considerável?
Que filho-da-puta de tempo este!?…que vá bugiar mais essa cambada de chupapiças pouco fiáveis! (ui, lá me saiu, mas como diria a minha amiga Maria, pessoa de esmerada educação, que se foda!)
Está tempo para ler os Simples do Junqueiro.

Não existem limites para os nossos sonhos, basta acreditar!

A ti, que por aqui continuas teimosamente a passar, desejo-te um maravilhoso Natal. Um Natal de retemperação.
E, se tiveres de correr por algo, que seja pelo amor e sua eterna força, pela raiz vibrante da paixão que desagua nas palavras que estão dentro de ti, pela alegria de um coração a dançar, pelas pessoas que te gostam de ver rir, pelo doce de um beijo, pela saudade daquele abraço que te forra a memória e escorre qual rio, pela paz de uma paisagem de mil cores no meio do nada, por uma lágrima da lua, o perfume da rosa ou a cor do mundo que se dá, que se revela na sua verdade com um sorriso de esperança.

Para 2009, faço votos para que te consigas livrar daquelas acções de desmedida e mentirosa tendência que ninguém quer, que saibas rir quando te falarem da fereza da competitividade, que não te chegue aquele vendaval que dá pelo nome de crise e fabrica demónios de carência, que passes ao lado dos downsizing de fronte alheada e vaga e tenhas mesa farta e um pote de ouro no recôndito do teu lar, que nunca conheças a sanhuda face do outsourcing ou a dos recibos verdes e, finalmente, que as reduções de custos e a maldade milenta das habilidades sinergéticas, as leve o ermo vento como sombras do passado.

Boas festas e que o cérebro te inche de novas e boas ideias.

Já não existem álamos, nem luas, nem métricas que me valham.

A mão está pesada… e a pena, véu de alma transparente já não me embala, nada surge neste descansar de nada… não escalo montanhas, não atravesso oceanos, tão-pouco enfrento tempestades, e pergunto-me no desalento, no desencanto, na tristeza esparsa sem nenhum motivo de pranto, para onde foram as palavras?…
Que fiz dos infindos tesouros recolhidos e guardados na pele… onde se recolhe o mistério do imaginário quando desaba o silêncio sobre os crepúsculos negros de tristeza que misteriosos me rodeiam e porque quero tanto o que ninguém me pode dar?
Chove e interrogo-me na tarde lívida se a tristeza das gotas que caiem será minha, que sabor será o do grito que expressa sentimentos e teimo em calar, e quantas serão as palavras nuas de diferentes paladares que se debruçam a poemar.
Mas para quê interrogar-me? Não sei que fazer com as palavras que transporto neste tempo de horas certas em tempo que não é certo e onde os ângulos se não encaixam, da pressa para tudo até para não se ter pressa dos dedos entrelaçar no calor necessário de um ombro amigo no qual chorar… resta-me lamuriar por ser tão como os outros, tão singular.
Olho pela janela em busca da luz que se reflecte nos sorrisos, dos passos que dançam tangos de olhos unidos até cegar, da mágica brancura dos sentimentos cristalinos, das sombras esbatidas que se abraçam num poema ou na ternura de um olhar, do dia em que nas minhas mãos sentirei o sentido das tuas como palavras nuas que não poderei calar, da bússola, de um mapa, de um paralelo dobrado num qualquer canto de luar…

A chuva parou, e o céu, devagar, mesmo devagarinho, sem pressas, seguindo o seu caminho, abriu um sorriso único… eis então que a página, incontida se moldou, e subindo às palavras de azul se manchou.

Apanhado com mirabolante facilidade na teia da loucura.

A mulher que rondava os trinta anos gritava para quem a queria ouvir que, aquele ali, apontando um indivíduo dos seus quarenta com ar de redfish baratuxo, era um patife. - Enganou-me, gritava, e enquanto puxava pela mão de uma rasteirinha de olhos arregalados, continuava: - E agora este merdas nada quer dar para a criança, nem sequer o nome. Bandido! Filho-da-puta!…
Os curiosos que se tinham juntado para assistir ao desacato, possuídos daquela facilidade que nos caracteriza em tomar partido sobre qualquer polémica, davam a sua contribuição condenando já o homem, a maioria, dizendo que há gajos que são uns bandidos, querem é dar uma queca mas depois não assumem a responsabilidade, outros, defendendo que a criança não tinha culpa dos erros dos adultos e, era imoral, no mínimo, não ter o nome do pai. Tudo isto dito de forma sintética e desengordurada.

O alvo da confusão estava estupidificado; ora olhava a mulher, ora olhava as pessoas, sabendo estar metido numa grande alhada. Por vezes, nos milimétricos silêncios tentava dizer qualquer coisa, mas logo a mulher teimava em lhe estragar o encanto das palavras berrando-lhe a plenos pulmões que ele era um bandido, que a tinha enganado, que as havia de pagar, que a mãe bem a tinha avisado… Tudo isto numa gritaria tal -como se lhe despejassem em cima calhaus a ferver, que se ouvia de uma ponta a outra da Gare do Oriente.

Não cheguei a saber para quem ficaram os méritos e os deméritos, ou tão-pouco quem arcou com a fúria daquelas gentes, embora, o alvo, fosse mais óbvio do que a boa música ter a ver com o “soar bem”, não assisti ao resto da discussão, não sou grande apreciador, estas apertam-me o peito e causam-me tal ansiedade que me leva directamente à cerveja, por isso fui andando.
Enquanto me afastava, continuei a ouvir os impropérios da mulher que sobressaíam do vozear da multidão que ia engrossando à volta dos desavindos.

No dia seguinte, fazendo o mesmo percurso, reparei ainda de longe que havia outra confusão precisamente no mesmo local. Enquanto me aproximava, reconheci os gritos da mulher que gritava a plenos pulmões os mesmos impropérios da véspera; que ele era isto, que ele era aquilo, que não dava nada à criança… e os curiosos à sua volta, tal como antes, tratavam de tomar partido e dar a sua opinião.

Tudo igual ao que tinha visto no dia anterior com um pormenor que fazia toda a diferença e tornava cândida qualquer tese que tivesse desenvolvido. Incrédulo, avancei para me certificar e constatar sem sombra de dúvida que este era mais forte e mais novo que o outro, até mais alto, este homem, era óbvio, nada tinha a ver com o redfish baratuxo de ontem.

Saí dali a correr, pelo caminho, sorridente, dei uns pontapés na fronteira artificial dos moralismos que ontem se tinham encavalitado, sabia que já me esperava um arroz de lingueirão com jaquinzinhos fritos.

Nota: Conto revisto e republicado porque sim.

Lances diferentes e novos enlaces.

Talvez a vida seja um jogo inconsciente onde pretendemos dominar o sentir.
Talvez por o amor ser mais importante do que os danos infligidos, os descuremos frequentemente.
Talvez sejamos, afinal, apenas peões inquietos em tabuleiros de negros dias e noites brancas de denso sentir.
Talvez, talvez, talvez…
Talvez por isso eu beba a poesia devagar enquanto outros correm apressados sem saber o que está ali… nas pequenas dobras do tempo… no que é importante e também nas coisas sem importância, com seu ritmo simples e quotidiano na estrita conta do tempo sem tempo.

Talvez para os poetas as palavras e os silêncios sejam sinónimos em significância... que afagam na cumplicidade e ferem na dor, não importa… têem sempre o sabor doce da ternura mesmo quando sabem a sal ou se escapam num fio de vento pelas metáforas... quando criam um estuário de novas figuras da linguagem ou transformam as banalidades em pequenas epifanias, quando agarram nas palavras gastas e as vestem com as cores dos sentires e do sonhar.

Talvez, sensatamente, um poema não se repita como não se repete um conto, um saudoso mar, uma fotografia sob a mesma luz natural ou a exacta inclinação dos raios solares, naquela mesma árvore, com aquele número incognoscível de folhas vergadas ao vento…
Cada poema tem o dever de falar, tem o seu próprio ritmo que nos envolve e atravessa, que ecoa um outro tempo, um outro espaço, com uma cor que é afinal um espaço sem cor à espera de ser colorido por um ouvido atento…

E,
porque só os poetas podem salvar as palavras, AQUI, um sentir denso… uma pétala de rosa azul a chorar…

O Maneirinho


Dircelina, lembrava-se bem de quando chegou com a maleta de mão trazendo por companhia a sua cor preta, a pouca escolaridade e o estigma de um país em guerra. Vinha para trabalhar neste que por lá era visto como a árvore das patacas e, por via disso, a esperança fizera-lhe companhia, aconchegara e soprara-lhe docemente no peito dizendo-lhe em surdina: vais conseguir. Para trás, para lá dos ventos vindos dos mares, ficava a família: mãe, duas filhas pequenas e quatro irmãos. Dois deles estropiados. Era tudo o que a guerra não tinha levado e nisso não queria pensar. Aquela era a altura das grandes tarefas, o momento que ambicionou e não tinha receio de confrontar. Para isso contava com outra grande aliada: a vontade inabalável de vencer.
Aquele emprego que um antigo amigo do seu pai lhe arranjara não era o que pensava, esteve para o recusar, não o fez pela miserável fome que já há dias a acompanhava, mas hoje, dez anos passados, sabia que tinha ganho a grande prova. A tristeza do primeiro dia em que obrigada se deitou com um cliente e depois com todos os outros que se seguiram, eram passado assim como as lágrimas que abriram sulcos nas suas faces de ébano.
O desejo pelo seu corpo esguio e musculado do trabalho na sanzala, tinha-lhe garantido uma posição privilegiada entre as escravas do Maneirinho e, desde muito cedo, traçara o seu plano.
A vinda da família acontecera já depois de ter conseguido casar com o Maneirinho, a seguir, foi um passo até o convencer a investir o dinheiro ganho com a escravatura num negócio que ela e a mãe passaram a controlar, por fim, ele começou a gostar daquele chá que, com receita da sua avó, a mãe lhe ensinou a fazer e que provocava no Maneirinho o estado esfuziante de alucinada embriaguez.
Foi nesse estado que o convenceu ser ele capaz com a força do querer, parar o rápido Lisboa-Sintra.
Postada no apeadeiro ainda lhe notou incerteza no olhar, um despertar a destempo quando, no meio da linha, viu o comboio aproximar-se.
Por fim, num murmúrio quase inaudível, quase indizível, melodiosamente disse: faz as tuas contas com o diabo.

Nota: Conto revisto e republicado porque sim.

Há mais mundo!… o arco-íris reflecte-se em sete cores!…

Não chove lá fora, mas o dia é triste como se houvera chuva e as crianças partissem para longe da infância ingénua, para longe de toda a graça entressonhada, sem um pesar, uma dor sequer.
De sentido alucinado desprezo o mundo que em seguida abraço, removo-lhe as crostas duras da verdade rotineira, subverto a realidade comum neste jogo de aparências e, consumido de alterabilidade, não respondo à voz interior que balbucia: quem és tu no outro lado do espelho deste jogo ontológico?

A vida não passa de uma confusão cósmica de conjugações vãs e difíceis, onde só Viver! e Amar! têem significado depois de ceifadas as expectativas que nascem das palavras.

Corre um rio de interrogações enquanto olho a estrada esfíngica das horas mortas e, na confusão do caos que trespassa os meus olhos cerrados e me freme o peito, debato-me com um débil grito, um murmúrio: há mais mundo!… o arco-íris reflecte-se em sete cores!…