Regressara do carro onde esquecera o telemóvel. Aproximou-se, olhou-o com ar recriminador, mas contendo-se nada disse.
Ele, enquanto acendia um charuto e se recostava na cadeira, disfarçadamente limpava um resto de açúcar que se lhe alojara no canto da boca. Roubara-lhe o sonho... aquele sonho era de facto bonito, belo demais para que ela se não lembrasse, agora nada havia a fazer.
Quinze anos depois, no mesmo restaurante de Lisboa....
Estava intrigada com o cliente da mesa ao lado, não percebia o apetite obsceno que o levava a devorar a última dúzia dos belos sonhos do Chefe Pedro. Por causa dele, nem um tinha sobrado e perguntava-se: - porquê, santo Deus, porque tenho de me contentar com uns simples brigadeiros enquanto aquele psicopata de cérebro liso se empanturra com a especialidade do Chefe?
Assim que a oportunidade surgiu, fez sinal ao gerente para que se aproximasse e de imediato inquiriu-o sobre a presença insólita de tal personagem. Depois de uma breve conversa, ficou a saber que tinha sido um homem importante e um bom cliente da casa, mas alguns desaires na vida tinham-lhe afectado os negócios e tinham-no atirado para aquela situação. Hoje, ao vê-lo no banco do jardim em frente, depois de uma breve conversa, resolvera matar-lhe a fome com aquilo que ele mais gostava; os sonhos do Chefe Pedro que ele não dispensava sempre que antes ali almoçava.
Na posse de tal informação, observou atentamente o homem; verificou que os cabelos em desalinho apresentavam grandes madeixas brancas, rondaria os cinquenta e cinco anos e, por baixo das sujas barbas por fazer, notava-se algo do que tinha sido.
Sentiu-se obrigada a acercar-se da mesa daquele homem, a mesma força que a obrigara naquele dia a entrar naquele restaurante, voltara. Aproximou-se e sentou-se na cadeira vaga em frente do homem que desinteressado a olhou continuando a comer os sonhos que restavam, mas no breve momento em que trocaram olhares, uma insustentável e dilacerante recordação fê-la estremecer: eram os mesmos olhos, agora baços e sem a vivacidade de outrora, mas eram eles, aqueles a quem durante anos dedicou insultos a cada parágrafo de pensamento, ali estavam agora no rosto do culpado dos tempos perdidos e dos sonhos por realizar.
Maria pegou no garfo de sobremesa que estava à direita do indivíduo, este lançou-lhe um breve olhar enquanto a sua mão se aproximou do último sonho, Maria num golpe rápido e cru, cravou-lho com toda a força fazendo com que a mão direita ficasse pregada na mesa. Com um grito lancinante a subir-lhe na garganta, o homem olhou-a. É ela!... lembrou-se num caleidoscópio de emoções enquanto combatia o grito de dor que espreitava, aquela mulher de rosto amargo e duro era a memória de um tempo. Viu-a com os olhos pregados nos seus pegar no último sonho e levá-lo à boca. A sua memória tornou ao dia em que lho tinha roubado e à noite em que, entre as paredes do escritório e contra a sua vontade, lhe destruíra o pequeno mundo.
Soubera depois que a Maria tinha sido internada num hospital, e isso, com as consequências que então advieram, afectaram-no para além do imaginável.
Viu-a largar finalmente o cabo do garfo e levar a mão à boca para retirar uns restos de açúcar que ali tinham ficado. Quando, finalmente, o grito contido se apossou da garganta, já Maria transpunha a porta do Restaurante.