Das afecções perceptíveis à evidente ira (Ensaio)


O dia tinha começado mal e crescera pior ainda. De olhos semicerrados e o cérebro focalizado em blocos de memórias, dou por mim a percorrer as fases sobrepostas da vida distorcendo a lógica e diluindo-a na minha verdade, criando assim uma fenomenologia alimentada por esta base de informação. A função redentora da morte neste espaço-tempo não me traz equilíbrio, a razão não sabe lidar com aspectos duplos onde as sombras cogitam e percorrem movimentos de resposta que não impliquem estádios éticos.
Ponho de lado as violentas energias comprimidas de Tolstói in A Morte de Ivan Illitch e dou uma última puxada no Satisfaction de calibre 46 que abandono no cinzeiro sem apagar. Pego nas chaves do Bentley Continental GT e, já no carro, resolvo viajar até Lisboa e jantar no Pragma que, não sendo um restaurante sossegado devido aos concertos do Casino que inundam a sala, é elegante, discreto e tem uma filosofia gourmet que me agrada.

Entro, olho o candeeiro na entrada da autoria de Leo Marote e penso no que a existência tem a ver com percepção e contacto da forma. Acomodo-me na mesa que reservara pelo caminho e o Chefe aparece com o designado aperitivo do Chef: um delicioso bombom de chocolate recheado com foie gras e compota de cereja. A seguir sugeriu o amuse bouche: um palmier de tomate confitado e azeitona, com compota de legumes assados que desperta o apetite a qualquer um, acompanhado por uma espumante Herdade do Perdigão do Alentejo. Começava bem o jantar. Entre os pratos de peixe e carne, acompanhados por um branco Chardonnay do Chile e um tinto Campo Ardosa do Douro, surpreendo-me com a originalidade de um sorbet de líchias com pérolas de hortelã e termino contrariado com o coulant com gelado de after eight que apresentava um travo difícil de identificar. Com tão pouco se boicota uma refeição.

Enquanto espero pelo café, escuto as conversas nas mesas próximas. Numa delas, uma platinada de meia idade, dizia entre outras minudências, que o segredo da sua juventude era um sérum com ouro da La Prairie que descobrira quando visitou o Chelsea Flower Show, acrescentando com um sorriso hipócrita: – Felizmente, devido ao seu elevado preço, fora do alcance da gentinha. O seu acompanhante que tudo ouvia, tudo aceitava e que eu conhecia da Enoteca de Cascais, ao reparar que os observava, brindou-me um olhar que tentava mostrar que a sua posição ali não era tudo na vida. Numa outra, alguém dizia em tom irado, visível também na cor das suas faces, que desprezava expressões que fediam a presunção e comentava que a ira podia funcionar como uma máscara às deficiências mal emendadas. Concordo! Quantos não inventam ofensas só para se mostrarem indignados… é a parte maldosa do ser humano, a parte que julga sem ouvir ou pensar e trai confianças, destroça amizades e arrasa nações. Os primeiros impulsos da ira reclamam para si autoridade e a forma apressada, ou melhor, preguiçosa, como a construímos, pode acabar por destruir relações humanas e nos enganar a nós próprios. Sei que a ira é uma afecção temerária e poderosa, uma afecção que liquida qualquer fronteira ente a realidade e a ficção e se pode estender a um povo quando este não se dá ao trabalho de pensar.
A ira é uma loucura breve, mas dessa loucura onde poucos pensam o que se diz, advêm por vezes consequências que se perdem no tempo pela incapacidade de se descodificar, concatenar e raciocinar sobre ela num grau mais excelso que, implica ser coerente com um certo número de princípios e valores.

Preparo-me para sair quando oiço na mesa ao lado, a mesma de antes, alguém em voz alterada dizer que, a inteligência ou a razão não é independente da emoção. Viro-me na direcção da voz e encaro com dois olhos negros que me fitam como se algo de decisivo estivesse suspenso; dizem-me aqueles, saberem que eu ouvira o que fora dito e olham-me em desafio. Percebo que a detentora de tão belos corais negros está alterada. Ao seu lado, seguindo o seu olhar, uma sonsa, ansiosa, aguarda para ver se me espalho. Embora eu fosse de poucas falas dando a entender qualquer tipo de obstinação, não administrava o silêncio, gostava sim de conversas módicas sem utilização abundante de pormenores e, por isso, tendo o cuidado de me envolver em modos afáveis, sou directo ao dizer-lhe: - Também não pode ser independente dos nossos princípios e valores.
Não pretendendo continuar a interlocução, deixo a eloquência por ali e saio com um à vontade ditoso, embora apressado, não fosse a interlocutora que se preparava já para ripostar, perder a compostura, incapaz que estava de discernir sobre o que é justo e verdadeiro.

Abandono o Pragma e enquanto me dirijo ao parque de estacionamento, recordo-me das palavras de Aristóteles in Ética a Nicómaco, quando diz: “O que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado. Quem assim for é gentil, se é que a gentileza é uma disposição louvada. Porque o gentil quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece pecar mais por defeito, porque não é do tipo vingativo mas mais do género que perdoa.” Também, Francis Bacon in Da Cólera, identifica formas de controlar e temperar os hábitos adquiridos para nos encolerizarmos, dando-nos soluções para os evitar, provocar ou apaziguar.

Sorrio ao pensar que me livrara a tempo de algum elemento circunstancial e excessivo envolvido na ira que pairava naquela mesa, sabia que o debate já não conseguiria ser limpo e isento, pois, convencido sou, que a ira é uma força reactiva, o elemento desordenador de algo que ulcerou o espirito; tem sempre uma razão, mas raramente boa, pois, revela-se tanto na dificuldade de obter um bem como de superar um mal e, para a combater, devemos conservar o domínio de nós, como dizia Séneca nas suas Cartas a Lucílio.

Entro no carro e acendo um Gotham Selection No.65 no qual dou duas fortes puxadas, sinto então, finalmente, o jantar terminado. Já no regresso, lembro-me do ensaio que a Maria me pedira e ao qual tinha torcido o nariz naquele jantar de sardinha assada no Torremar em Oeiras, acrescentado que, a minha especialidade, se alguma tinha, eram os contos.


(Publicado na Revista Inútil)