Será solitário o oficio da escrita, requererá silêncio e um frio tremendo na alma para que não trema a mão?

Leio Dostoievski, no livro "Noites Brancas", e sublinho de passagem o sublime simples como recado a alguém: "Nunca esquecerei a história duma linda e pequena casa cor-de-rosa claro. Era uma casinha de pedra, olhava-me com um ar tão afável e mirava tão orgulhosamente as suas frias vizinhas, que o meu coração se alegrava sempre que passava diante dela."

E, relendo “As grades” de Sophia, sinto que a poesia existe, tanto na forma como se sente o que se lê, como vendo o rosto belo da mulher de primavera que Boticelli cristalizou na sua plenitude e abstraio-me do verão, subverto-o até o conseguir pressentir, e escrevo na memória um conto sobre o contador de histórias que declama a rosa descosida das sombras das suas pobres vestes, e não me surpreendo por o silêncio se demorar nas minhas mãos quando concordo com Caeiro:

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando a janela abre.

Reflexos de luz

Num tempo de tormentas que consomem, de ilusões que se esvaem sem um lamento ou lágrima embriagada da tristeza do fundo dos dias, fizeste-me sorrir. E, no reencantar de sentimentos e sentires, curvados no brilho das estrelas dos teus olhos, o sentimento cresceu e quis ser pássaro das rendas dos silêncios, e no som das brumas, nas imagens de veludo, nas palavras de crepúsculos doirados… poder voar!
Então, tudo renasceu… simples, calmo e infinitamente belo onde antes era desilusão.
E num céu azul de sonho, onde escrevo as vozes que ouço dentro de mim e me afasto daquilo que sou, torno-me vento, arco-íris, fonte de paixão ao encontro dos braços que suavemente abres… e danço no som do teu coração.

Palavras jogadas à noite...

Levantamo-nos numa noite em que a insónia é maior que o cansaço e, no silêncio breve, utilizamos as palavras como se tivessem crescido connosco; fiéis, discretas, superlativas… escrevemos porque existe uma abstracção mental onde tudo se encaixa, ligando o passado ao futuro onde a ponte é o presente. Admiramos os que procurando resultados ou respostas com olhos de ver, encontram interrogações e o outro lado da humanidade que é ela mesma, com as nossas imperfeições onde na sombra que se esconde do sol se desenvolvem as máscaras…

Nada disto faz de mim um homem melhor… nem menos que um pigmeu nem mais do que um gigante… são apenas expressões deliberadas, ecos admiráveis convocados para melhor disfarçar os silêncios com que cuido das minhas crostas.
Reforço finalmente uma ideia: entre o mais e o menos infinito o zero também existe, e insisto na metáfora que roubei na minha infância: há um sonho com sabor a sol dentro de mim.

Maré Alta




Às mil e tantas horas d’uma manhã raiada,
Boca na tua, pele de espuma em rito sagrado,
Escorro em ti, como em fêmea desabitada
E a paciência de um espraiar cadenciado.

E no silêncio breve de um tempo adormecido,
Sensível e vibrátil como as mãos de uma guitarra,
Invado-te em plural de nós, venial e decidido.

E Tu, sôfrega mas imperturbável,
Liberta das amarras da razão,
Espaçadamente me bebes
Rumando a um mar de emoção.

E segredas-me; vem comigo, amor. Vem!
Como um só partiremos nesta viagem.
Para além do poema e do tempo que nos sustém.