A Arte da Viagem.


Vamos fazer uma história? Perguntou com aparente despropósito enquanto olhava o quadro. Era useira e vezeira nestes pedidos tão inocentes como a frescura das manhãs. Bastava que algo lhe remexesse o subconsciente para o seu anti-racionalismo se manifestar e começar a deambular pela fértil árvore da imaginação.
Eu sabia que ela esperava e sabia o motivo do pedido: aquele quadro de Madoz que muitos veriam com a costumeira e providencial simplicidade de quem não ousa imaginar, não era o seu caso. Tinha pela vida um ávido interesse e via sempre mais, muito mais. Via significações simbólicas, metáforas e imagens onde outros não passavam da primeira e impenetrável camada brilhante. Vivia intensamente as sensações sem nunca achar que a vida era bastante, como se não soubesse ser outra coisa.
Lembrei-me de uma conversa há dias atrás acerca da arte contemporânea e da discussão que hoje se faz sobre a espontaneidade necessária e, agora, aqui estava a admirar a obra deste artista espanhol que dizia a propósito, só lhe interessar a técnica enquanto lhe permitisse obter os resultados desejados.Também ele era fértil em simbolismos estéticos e por isso a sua exposição, aqui na Galérie Fréderic Bazile, em Montpellier, era de um refinado humor surreal que punha à prova a magia da nossa psique, a magia que fascina os poetas e os leitores de poesia.

Bem… ela esperava, e a melhor maneira de viajar é partir e sentir!
Peguei-lhe na mão e dirigimo-nos ao banco em frente da fotografia de um relógio com uma correia que a imaginação simulava já ser uma linha férrea. Aquela imagem já não era física, era alma. Ela já não era corpo, era aura a planar sobre o momento.
Antes de nos sentarmos disse-lhe: - Chegámos a tempo, o comboio estava quase a partir e a manhã está a raiar. Vamos largar por aí fora!
Ela então, soleníssima, olhou-me e disse: - Pai… tens a certeza que este é o comboio do Tua? Pisquei-lhe o olho em sinal afirmativo e coloquei o dedo na boca como que a pedir respeito. Recostou-se no banco. Do seu ponto de partida olhava de sentimento distraído o quadro, quando, quebrando o impenetrável silêncio disse com um sorriso deliciado: - Que bom… adoro a paisagem do Douro…
Também eu… pensei com uma oculta e absurda vontade de soluçar.
…Perde-te, transcende-te minha filha… a meio caminho viajaremos pelos campos extensos do tempo da minha infância. O preço do sonho é a vida.

O Sem Abrigo


Demos de caras no virar da esquina e assustei-me sem saber se havia motivo. Era alto, magro e envelhecido pela pobreza visível nas mãos inchadas das frieiras e nos lábios gretados pelo cieiro. Olhou-me. Primeiro com cara de poucos amigos, mas ao ver-me assustado depressa mostrou um sorriso tranquilizador. Compreendi que a carantonha inicial com que me tinha brindado se destinava a afastar possíveis e inesperados inimigos. Reparei, olhando-o agora mais calmo, que nos braços e na cara as impigens abriam feridas, eram as feridas da pobreza que o marcavam e marcam muitos sem-abrigo nos Invernos rigorosos.
Perguntei-lhe sem grande convicção se precisava de ajuda. Ele tirando a boina suja e safada do muito uso, abanou a cabeça num movimento concordante. Arrependi-me de imediato ao ver-lhe grandes peladas na cabeça e a visão da dentadura negra e desfalcada com que me brindou.Ele avançou um passo e eu recuei um outro, ele então recuou mas eu não avancei, estava bem assim. Naquela confortável distância lancei-lhe algo contrariado a pergunta: - E precisas do quê? Ele olhou-me de novo sem falar e com a mão que antes tinha no bolso do casaco fez um gesto que entendi como um vai-te lixar.
Compreendi que o meu recuo anterior, embora instintivo e talvez por isso, lhe tinha transmitido a mensagem errada do que eu era. Eu simplesmente não esperava aquela situação, não estava preparado, tinha sido apanhado de surpresa. Quem se julgava aquele esfarrapado sujo e doente para me julgar a mim? Recuou nos passos mas um pouco de recuo nos gestos não lhe faria mal algum.
Dispus-me a sair dali e ataquei a intenção em passo rápido quando, ele num sinal de dedos me pediu um cigarro. Naquele momento e pela primeira vez tive pena de não ser fumador, não era, em consequência não tinha cigarros. Ele com novo gesto de mão despachou-me como se dissesse que não era ali desejado.

No dia seguinte voltei. Vinha preparado com um maço de Marlboro no bolso e estava desejoso de ver a cara dele quando lho mostrasse. Agora que já lhe podia dar alguma coisa queria ver se me mandava lixar.
Procurei-o sem resultado, vi nas ruas por perto se lhe encontrava sinal mas nada, devia andar por outros sítios, pensei. Convenci-me que voltaria por ali e nos três dias seguintes voltei com o maço de cigarros no bolso, mas tinha desaparecido.
Finalmente, ao quarto dia, avistei-o ainda ao longe. Estuguei o passo sempre com o olhar a vigiá-lo não fosse ele desaparecer mais uma vez e aproximei-me. Quando se virou vi que não era o mesmo, este era mais novo e sem os sinais de doença do outro, era também mais forte e mais agradável. Olhou-me e sorriu de imediato dando as boas-noites. Aproximei-me ensaiando um sorriso e sempre preocupado em não demonstrar receio. Então, quando estávamos à distância de um braço, cumprimentei-o e estendi-lhe a mão com os cigarros. Ele com o gesto de os aceitar, agarrou-me o braço e desferiu-me um violento soco bem no meio da cara.
A pancada foi tal que fiquei um bom bocado atordoado, devia ter-me partido o nariz, pensei meio zonzo e com dores enquanto o agressor aproveitava para me aliviar da carteira e outros pertences. Felizmente um grupo de Skin Heads que descia do Bairro Alto, ao verem o que se passava, puseram o agressor em fuga seguindo-o em grande correria na direcção do Cais do Sodré. Após os ver desaparecer e ter recuperado a serenidade necessária, desloquei-me com alguma dificuldade à esquadra da zona com o propósito de receber os primeiros socorros e, principalmente, para apresentar queixa devido aos documentos que o agressor levara consigo. Um dos agentes quis vir comigo ao local e apercebi-me que se passava mais alguma coisa quando me pediu para no dia seguinte me apresentar na Judiciária.
Depois de uma longa conversa com o agente destacado para o caso, fiquei a saber que o larápio agressor do dia anterior era suspeito de ter morto um sem abrigo. Os indícios apontavam para a possibilidade de ser o mesmo que procurei.
Ao ver que a informação me abalara disse-me que os familiares do homem vinham a caminho para a identificação, mas era necessária também a minha confirmação de que era aquele homem que eu procurara e que tinha visto naquela noite. Movido pela curiosidade acedi deslocar-me com um agente à morgue para a necessária identificação.
Acabados de chegar fomos informados que o irmão do sem abrigo já o tinha identificado. Dirigimo-nos à sala onde estava o cadáver e ao transpor a porta dou de caras com o meu pai que, lavado em lágrimas, me olhou surpreendido.Atónito, instantes depois e pela sua boca, fiquei a saber que aquele sem abrigo era seu irmão, portanto meu tio. O tio mudo desaparecido e de quem eu ouvia falar desde que me lembrava.
Fazia dezoito anos que nunca mais soubéramos dele, agora, devido a um papel encontrado no bolso do casaco onde alguém tinha escrito que ele era o José Emanuel Laranjeira e que procurava o irmão António Leonardo Laranjeira tinha sido identificado.
Quando interiorizei a informação, já sabia que era essa a ajuda que ele queria. Ao avançar para mim preparava-se para me mostrar o papel, e eu, seu sobrinho, tinha recuado com medo.
Instantes depois compreendi finalmente que não era medo. Era algo pior, mais profundo e enraizado, era um mal de alma.