Outros caminhos na dulcíssima distância dos hábitos.


Caminhava com o ritmo marcado, não se lembrava de onde vinha nem lhe eram claras as cores essenciais, mas isso não parecia incomodá-lo por mais irónica que lhe parecesse a distanciação com que encarava o facto.
Era um homem de baixa estatura, de aparência um pouco míope e uma pequena calvície na fronte, vestia fato completo azul-escuro, camisa branca e uma gravata azul ciano. Os sapatos reluziam avassaladores do polimento e, estranhamente, sem uma dor digna de nota, não conseguia deixar de arrastar o pé direito sempre que dava um passo. Essa era a única preocupação denunciada pelas rugas ligeiras em ambas as faces e pelo facto de há muito não se sentir tão bem; aquelas malditas articulações que o apoquentavam há anos hoje não davam sinal, só aquele arrastar do pé que teimava em marcar o ritmo e a dormência do braço do mesmo lado lhe desviavam o pensamento do objectivo da caminhada.

Quando vislumbrou o sopé do monte que se tinha descoberto aos poucos, sorriu pensando que o objectivo estava próximo, ali mesmo à sua frente. Sentia-se bem para encarar a subida até à oliveira que teimosamente decidira medrar naquele cume inóspito longe do ondular secreto das planícies.
Finalmente chegou, há muito que ali não ia mas verificou com satisfação que tudo estava na mesma; a oliveira e o mato rasteiro dobrados pela voz do vento agreste de norte, teimavam em ali permanecer.

Olhava à sua volta quando viu o Carriço assomar por detrás da raquítica oliveira e caminhar na sua direcção de rabo a abanar em sinal de contentamento. Logrou ter visto gotas de água nos seus olhos imediatamente antes de este lhe saltar para os braços quase o fazendo cair.
Quando conseguiu que parasse de lhe lamber a cara e o acalmou, reparou que a trela de corrente estava pendurada na oliveira. O Carriço percebendo de imediato a intenção, de rabo a abanar colocou-se em posição para que o dono o prendesse.
Finalmente, quando estavam prontos para a partida, sem qualquer lamento entendeu o motivo da caminhada: algo lhe dissera que o Carriço o esperava naquele local onde no ano passado o havia enterrado. Não quisera partir sem o dono, esperara por ele, pelo seu tempo, e naquela tarde de Outono, um raio de sol estival que pareceu absorver a liquidez das rochas uniu-os como frutos da mesma árvore.

Só os idiotas são verdadeiramente inocentes. Já o dizia Pamuk.

Acordo, e ainda em torpor, com delicada cadência leio no número dois da “Ler e Depois” do passado Janeiro, uma entrevista a João do Nascimento que editou na Portugália o “escrever enquanto todos dormem”, prefaciado por Valter Hugo Mãe que nos chama desde logo a atenção para a perplexidade de não encontrarmos neste livro as maiúsculas da praxe e que, iremos também encontrar uns hífens metidos-entre-palavras onde nunca os viramos antes. Até aqui nada de anormal e nenhuma compulsão na assunção de opinião me ataca e estou até disposto a concordar com esta ordem de pensamento mesmo não sendo a minha. Mas já estranho que (coisa para me dar motivos para rir não fosse o torpor instalado), logo no inicio da entrevista, à pergunta sobre o atrevimento de ignorar as regras da pontuação escrevendo em minúsculas e utilizando o hífen para ligar palavras onde ele não existe, responda o João do Nascimento, que: “…advém da evolução natural e, simultaneamente, trabalhada, de um estilo que ambiciono próprio…”.

Ora, com a devida respeitabilidade e seriedade que o portuguesinho gosta, uma coisa é certa; o João do Nascimento que deve ser pessoa de vários enlevos e que adora o seu universo, a continuar nessa linha de raciocínio nunca irá encontrar o tal estilo próprio que ambiciona, aliás, o Valter Hugo Mãe bem lho podia ter dito já que, em prefácio num outro livro que agora não recordo o titulo e me falta a paciência para procurar, fala da originalidade do ponto e da escrita em minúsculas, que usa, e de ele próprio ter sido também vitima dessa estranheza, pois, assim, escusava o João do Nascimento de incorrer no desagrado de pretender ter o que nunca foi dado para adopção, embora ande por aí nas mãos de bons e maus escritores e, nalguns casos, de forma tão desajustada que mais parece uma espécie de alquimia da montagem ou um quadro de tensão doméstica.

Para um entendimento saudável, embora amargo do que acabo de dizer, e porque nomear valoriza, universaliza e cria um espelho onde outros se podem mirar, importa dizer que, este “estilo”, que adquiriu uma particularidade vagamente nómada que está na génese e no desenvolvimento de algumas discussões e que já passou pelas casas de Al Berto, Herberto Helder, Gabriela Llansol, etc, aparece em 1981 (hélas, a coisa é contrariada pelos factos. (e pela física dos materiais.)), em conjunto com o travessão entre palavras e no fim de frases (que mais tarde se viria a estender), no primeiro livro de poesia da mesma autora do ecléctico e expositivo livro de contos, “a mais loura de lisboa” editado pela Difel (vá, respirar fundo, um, dois, três, expirar devagar…), e, sobre o assunto dizia então em 1984, David Mourão Ferreira depois de se referir à riqueza imaginística e à variedade de ritmos da autora:

…importa igualmente sublinhar como essas virtudes se vêem aqui «servidas» pelo próprio processo de pontuação adoptado pela autora – ­processo que não constitui, de modo algum, como por vezes acontece em outros escritores novos, um simples tique de expressão ou um mero maneirismo gráfico, antes o modo muito adequado de sugerir, na teia criada pela «corrente da consciência» a partir de certos instantes, que o ponto final representa apenas uma pausa provisória e que a minúscula que se lhe segue mais não faz que retomar o fluxo daquela corrente…”.

Ora, perante tal categorizada opinião, restará talvez aos escritores serem eles próprios na sua inteireza e não meros re.fazedores do "inédito" já feito, pois, nada mais fazem que tactear na escuridão.

Nota final para os impolutos avessos à critica e que reduzem quem a faz a um tipo predefinido de indivíduos:

E Jesus disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado.
Marcos, 15-16.

A Alá pertencem Oriente e Ocidente.
Alcorão, A Vaca, 19.