Lances diferentes e novos enlaces.

Talvez a vida seja um jogo inconsciente onde pretendemos dominar o sentir.
Talvez por o amor ser mais importante do que os danos infligidos, os descuremos frequentemente.
Talvez sejamos, afinal, apenas peões inquietos em tabuleiros de negros dias e noites brancas de denso sentir.
Talvez, talvez, talvez…
Talvez por isso eu beba a poesia devagar enquanto outros correm apressados sem saber o que está ali… nas pequenas dobras do tempo… no que é importante e também nas coisas sem importância, com seu ritmo simples e quotidiano na estrita conta do tempo sem tempo.

Talvez para os poetas as palavras e os silêncios sejam sinónimos em significância... que afagam na cumplicidade e ferem na dor, não importa… têem sempre o sabor doce da ternura mesmo quando sabem a sal ou se escapam num fio de vento pelas metáforas... quando criam um estuário de novas figuras da linguagem ou transformam as banalidades em pequenas epifanias, quando agarram nas palavras gastas e as vestem com as cores dos sentires e do sonhar.

Talvez, sensatamente, um poema não se repita como não se repete um conto, um saudoso mar, uma fotografia sob a mesma luz natural ou a exacta inclinação dos raios solares, naquela mesma árvore, com aquele número incognoscível de folhas vergadas ao vento…
Cada poema tem o dever de falar, tem o seu próprio ritmo que nos envolve e atravessa, que ecoa um outro tempo, um outro espaço, com uma cor que é afinal um espaço sem cor à espera de ser colorido por um ouvido atento…

E,
porque só os poetas podem salvar as palavras, AQUI, um sentir denso… uma pétala de rosa azul a chorar…

O Maneirinho


Dircelina, lembrava-se bem de quando chegou com a maleta de mão trazendo por companhia a sua cor preta, a pouca escolaridade e o estigma de um país em guerra. Vinha para trabalhar neste que por lá era visto como a árvore das patacas e, por via disso, a esperança fizera-lhe companhia, aconchegara e soprara-lhe docemente no peito dizendo-lhe em surdina: vais conseguir. Para trás, para lá dos ventos vindos dos mares, ficava a família: mãe, duas filhas pequenas e quatro irmãos. Dois deles estropiados. Era tudo o que a guerra não tinha levado e nisso não queria pensar. Aquela era a altura das grandes tarefas, o momento que ambicionou e não tinha receio de confrontar. Para isso contava com outra grande aliada: a vontade inabalável de vencer.
Aquele emprego que um antigo amigo do seu pai lhe arranjara não era o que pensava, esteve para o recusar, não o fez pela miserável fome que já há dias a acompanhava, mas hoje, dez anos passados, sabia que tinha ganho a grande prova. A tristeza do primeiro dia em que obrigada se deitou com um cliente e depois com todos os outros que se seguiram, eram passado assim como as lágrimas que abriram sulcos nas suas faces de ébano.
O desejo pelo seu corpo esguio e musculado do trabalho na sanzala, tinha-lhe garantido uma posição privilegiada entre as escravas do Maneirinho e, desde muito cedo, traçara o seu plano.
A vinda da família acontecera já depois de ter conseguido casar com o Maneirinho, a seguir, foi um passo até o convencer a investir o dinheiro ganho com a escravatura num negócio que ela e a mãe passaram a controlar, por fim, ele começou a gostar daquele chá que, com receita da sua avó, a mãe lhe ensinou a fazer e que provocava no Maneirinho o estado esfuziante de alucinada embriaguez.
Foi nesse estado que o convenceu ser ele capaz com a força do querer, parar o rápido Lisboa-Sintra.
Postada no apeadeiro ainda lhe notou incerteza no olhar, um despertar a destempo quando, no meio da linha, viu o comboio aproximar-se.
Por fim, num murmúrio quase inaudível, quase indizível, melodiosamente disse: faz as tuas contas com o diabo.

Nota: Conto revisto e republicado porque sim.