O Maneirinho


Dircelina, lembrava-se bem de quando chegou com a maleta de mão trazendo por companhia a sua cor preta, a pouca escolaridade e o estigma de um país em guerra. Vinha para trabalhar neste que por lá era visto como a árvore das patacas e, por via disso, a esperança fizera-lhe companhia, aconchegara e soprara-lhe docemente no peito dizendo-lhe em surdina: vais conseguir. Para trás, para lá dos ventos vindos dos mares, ficava a família: mãe, duas filhas pequenas e quatro irmãos. Dois deles estropiados. Era tudo o que a guerra não tinha levado e nisso não queria pensar. Aquela era a altura das grandes tarefas, o momento que ambicionou e não tinha receio de confrontar. Para isso contava com outra grande aliada: a vontade inabalável de vencer.
Aquele emprego que um antigo amigo do seu pai lhe arranjara não era o que pensava, esteve para o recusar, não o fez pela miserável fome que já há dias a acompanhava, mas hoje, dez anos passados, sabia que tinha ganho a grande prova. A tristeza do primeiro dia em que obrigada se deitou com um cliente e depois com todos os outros que se seguiram, eram passado assim como as lágrimas que abriram sulcos nas suas faces de ébano.
O desejo pelo seu corpo esguio e musculado do trabalho na sanzala, tinha-lhe garantido uma posição privilegiada entre as escravas do Maneirinho e, desde muito cedo, traçara o seu plano.
A vinda da família acontecera já depois de ter conseguido casar com o Maneirinho, a seguir, foi um passo até o convencer a investir o dinheiro ganho com a escravatura num negócio que ela e a mãe passaram a controlar, por fim, ele começou a gostar daquele chá que, com receita da sua avó, a mãe lhe ensinou a fazer e que provocava no Maneirinho o estado esfuziante de alucinada embriaguez.
Foi nesse estado que o convenceu ser ele capaz com a força do querer, parar o rápido Lisboa-Sintra.
Postada no apeadeiro ainda lhe notou incerteza no olhar, um despertar a destempo quando, no meio da linha, viu o comboio aproximar-se.
Por fim, num murmúrio quase inaudível, quase indizível, melodiosamente disse: faz as tuas contas com o diabo.

Nota: Conto revisto e republicado porque sim.

23 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

1.

a destempo o comboio da vida é sempre um caminho para o sonho impossível!

num corpo/rosto de ébano toda a fantasia é sonhável. mesmo que por linhas "assim revisitadas porque sim".

a escrita como escrava de um querer dizer.

isabel mendes ferreira disse...

2.


o sonho. da cor. que não da vitória de Obama.

isabel mendes ferreira disse...

3.


e para lá dos ventos____________a dor.



aqui num registo que a ficção trás ao de cima.

isabel mendes ferreira disse...

4.

alucinada esperança no pequeno conto da vida que tantas vezes é só um salto.

isabel mendes ferreira disse...

5.


....para o abismo!

isabel mendes ferreira disse...

6.



gostei!
muito.


não o tinha lido. nunca.


-
ainda bem que o trouxe.

.


beijo.
_______________.

isabel mendes ferreira disse...

felino o Final.


__________________.





!!!!

Anónimo disse...

Ainda bem que o republicou!

E a fome é capaz de nos levar a fazer coisas inimagináveis. Qualquer tipo de fome.

beijinhos

maria josé quintela disse...

como eu gostava de saber contar assim


a dor


subtilmente vestida de esperança


que também é ajuste de contas com a vida!



um beijo.

isabel mendes ferreira disse...

a contas com o tempo de mandar o diabo às urtigas e deus para as costas de um anjo sofrido.


beijo.

O Espírito do Tai Chi disse...

Continuo a passar por aqui e a gostar muito do que leio.

Votos de boa semana!...

António Serra

Anónimo disse...

Como contactar o responsável deste Blog?

enviar email para:


jsl@blogtok.com

Graça Pires disse...

Um conto singular. A vontade de uma mulher. A vingança de uma mulher. Comoveu-me mesmo "primo"...
Um abraço.

Mié disse...

arrepiou-me...


a força do querer calculado a longo prazo, camuflado de atracção irresistível. fatal.

onde se esconde deus ou o diabo?


Gostei. belo conto.

Um beijo

enorme

hora tardia disse...

o b r i g a d a.





____________________
____________________.


beijo.

tchi disse...

...que o diabo não sabe dividir.

Abraço.

tchi disse...

Um conto, com contares de vida.

Manuel Veiga disse...

morreu de morte "matada" o Maneirinho...

(mas ficaram outros. bem mais chulos... rss)

abraço

O Puma disse...

Nas ferrovias onde passam comboios

e outros aproveitam para suicídios

existem apeadeiros

onde as palavras como as suas

despertam outros caminhos

conhecidos

porque bem escritas

e musicadas

Abraço

Mar Arável disse...

Um despertar a destempo

é quase jaze

equilíbrio na assimetria

uma força que merece

ser desmedida

Anónimo disse...

Esse foi uns dos que me escapou no tempo...

Vejo ali, entre as letras sempre tão bem escolhidas, um sorriso seu e a maestria de sempre.

E lá se foi...

abraço amigo

[s]s

intruso disse...

...e ainda bem que foi revisto e publicado
(porque sim)

:)

abraço

tb disse...

Revisitei este teu conto de contas com a vida dos seres que sucumbem. Hoje, como ontem abre-me esta ferida por dentro.
Beijinhos