A Janela do Pensamento - I


Chovia. No charme do ócio, encostada à janela desenhava traços sem nexo no vidro que recebia a sua respiração. Enquanto isso, ele, no abrigo da chaise-longue escondia-se. Observa-a.
Estava sozinha no dia em que completava vinte e dois invernos. A serenidade encontrada era visível no rosado das faces. Os cabelos negros, caídos sobre os ombros, ainda cheiravam a sais de banho de onde saíra antes de enfiar aquela camisola masculina sobre o corpo nu e, como sempre também acontecia, era com o já conhecido nó na garganta assaltada pelas recordações que esta lhe trazia.
Colocou a mão esquerda sobre o peito e acariciou-o com gestos suaves e cadenciados. O momento, contigente e volátil, era uma paisagem de enlevos.
Pela primeira vez ele mudou-se para uma posição que lhe dava maior visibilidade. Ela continuava absorta nos seus pensamentos, enquanto, como se de uma recomendação bíblica se tratasse, os traços celebrando os sentidos continuavam a sair do seu lânguido indicador para o interior embaciado da janela.
Mudou de posição dando as costas ao seu observador, que inicia então um avanço lento. Quase secreto. Sem vacilar. Sabendo que não seria visto e, pela primeira vez, ela repara que subconscientemente forçara o indicador a escrever um nome. Iluminou-se-lhe o rosto pela imparável percepção e não resistindo leu-o quase em grito: - RODOLFO!?
Assustado com o som inesperado, ele saltou para cima da livreira que ficava na parede fronteira à janela do quarto.
Encostando-se repentinamente à janela, ainda com a mão esquerda sobre o peito, disse: - Gato desgraçado, um dia acabas comigo!

35 comentários:

Isabel disse...

bem...descuidada nesta tarde chuventa abri a janela...e plin....dei de caras com o insólito grito de um escritor de "falsos" quotidianos...que deles se ri e os acrescenta na subtileza de um "deslizar" de "gato".

contista da "paisagem" do humor escondido entre "roupa" e "névoas".

reconhece.se o gosto pelo mistério.

surpreender o leitor é a sua opção......vocação...!!!!



e saio.

que a chuva é sempre fronteira de outras palavras que vão chegar.


beijoooooooo!

Paula Viotti disse...

Querido PiresF

Do conhecimento científico da etologia felina sai o Rodolfo observador. Guloso.

Mas é da sua mão de (en)cantador que compõe mais um conto surpreendente,

para não variar.


............




Leio-o no gotejar de um beijo

que lhe desenhei na vidraça.


P

Unknown disse...

e eu abri a porta, envergonhada, pela ausência preguiçosa, a querer pedir DESCULPA, antes de mais nada.

mas logo sorri, feliz por ter acertado em cheio em mais um conto saboroso com que tu nos delicias.

e levo o rudolfo, que as minhas gatas andam a queixar-se:)))))))

um grande beijo, PiresF amigo

Maresias disse...

Estou encantada,

Até pensava ser um conto erótico.

Enganei-me

na gargalhada que o grito me obrigou a dar.

Fabuloso.


Mais um para juntar aos outros.

Beijo.

maré disse...

Boa noite PiresF.

não sei por onde começar...
se pela forma invulgarmente felina de apanhar o leitor escrevendo as memórias "virtuosas" de uma menina, deliciosamente sonhadora, (confesso uma paixão pela minha gata Micas, que tem o hábito de querer brincar ao esconde esconde, arrasando a minha serenidade em princípios de noite) ou se pelo apreço que tenho por si e que vem do tempo em que o encontrava no Piano.lia os seus comentários( perdoe-me) porque eram o que eu não conseguia dizer à Isabel.__ por não ser intelectualmente capaz, por ser uma simples leitora entre tantos que a admiram. e admirava a maneira viva de desmenbrar a escrita da Isabel recodificando-a.

tudo isso e a frontalidade que lhe descobri posteriormente, me fazem tecer laços.
acresce-se o facto de a minha querida Graça ser sua " prima"(sorrio).
a propósito, estive com ela no lançamento de "O silêncio : lugar habitado" e ela falou-me bem de si.
_ fui eu que perguntei, curiosa pelo sentido orientador da sua escrita.

obrigado PiresF! ...pela generosidade das palavras, pelo imenso prazer que é saber que existe.

um beijo, sensibilizado.

Maite disse...

Caro PiresF

Que fim inesperado! :)
Gostei do seu conto.

Abraço e tenha uma boa noite

Unknown disse...

E eu que já esperava pelo sangue, ou pela faca cravada silenciosamente, cai no pulo do gato e me encantei com as gotas de chuva batendo no parapeito da imaginação.

Grande abraço.

Mar Arável disse...

A senhora do gato

Uma viagem bem desenhada

bem pensada

bem escrita

Uma delícia

Abraço

Isabel Victor disse...

Que maravilha. Que graça ! Assustei-me mesmo com o Rodolfo ...


Fantástico, este teu breve conto visual. Apetece fazer um desenho


:))






beijos MIL (meu amigo _________)


obrigada








iv

maré disse...

e agora estou aqui!

Com um abraço. E um sorriso pleno que me ficou de uma noite em que estrelas se me afundaram nos olhos.


Vale a pena existir!
há sonhos nas mãos da noite que nos tocam para sempre.

_______

Posso abraça-lo?!

mfc disse...

Há uma altura em que o acordar é inevitável.

maré disse...

hoje ofereceram-me uma pérola
com o rasgo de luz que se sopra ao coração.

era uma vez ( ) uma menina feliz…

Obrigado PiresF pelo seu/meu sorriso.

um beijo

tb disse...

quando for grande quero escrever assim! :) deliciei-me com o conto e o terminar inesperado. Abraço apertado, amigo

Klatuu o embuçado disse...

O bichano é todo demoníaco, talvez daí ter sido o eleito para companhia da fêmea, enquanto os palermas canídeos se esfalfam a perseguir coelhos... ;)

Abraço.

fábio videira santos disse...

Caro PiresF,

O texto vai limando arestas baças de um cubo de realidade até nos ser fornecida a devida esfera animadora. Está claramente refinado. É o humor contra a estática, para mal do desgraçado do gato.


Abraço

Jorge P. Guedes disse...

Muito interessante este pequeno conto em que a voluptosidade dos gestos e pensamentos é subita e abruptamente interrompida por acção de um sempre surpreendente gato, que faz a personagem descer à terra e estar prestes a usar o vernáculo.
Bloody cat, holy cat! :-)

Boas Festas e um Ano Novo melhor que os anteriores, que os desejos ainda não pagam impostos!

Um abraço.

Desambientado disse...

Fiz um presépio, onde...

Os anjos cantam em coro,
Glória a Deus e Paz na Terra.
Nessa aldeia não há guerra,
Nem quero que haja choro,
Estão lá os meus amigos,
Os recentes e os antigos,
É nesse lugar que moro.

Boas Festas

mfc disse...

Sempre com o condão de nos prender e surpreender.

Tem um grande grande 2010.

Manuel Veiga disse...

um gato "quase-humano". só lhe falta falar...lol

muito bem escrito. bela cosntrução da personagem - a"dona do gato"

abraço

Baila sem peso disse...

...e há mais de três anos...
o espacinho mudou, mas o conteúdo
...antes andava por Timor...
hoje um conto encantador...
lá no meu refúgio antigo
guardei as letras do amigo
e hoje ao procurar
aqui o vim encontrar...
como sempre um belo Escritor!

(andei fugida por aí, sim...
acontece...uns dias fora
outros dentro de mim...:))
venho devolver um abraço
que ficou em Julho 2006
e pelos contos...deixar Parabéns!)

Fata Morgana disse...

Parecia que já vinha a ler de trás, de antes desta cena (é como se soubesse muitas coisas sobre essa "camisola masculina") e apetecia-me continuar. Como quando leio uma página à sorte de um livro desconhecido e decido logo que será a minha próxima leitura.

E o gato portou-se tal e qual como um gato!

Gostei imenso.

Abraço e Bom Ano.

Isabel disse...

pronto____________agora ficou a pensar......a pensar ... a pensar....

e


____________nada.
:))))

Vera disse...

Olá!

Adorei o seu texto! Muito bem feito, deixa o leitor em um suspense, mas de repente, humor, riso!!

Beijos!

Ana disse...

Janela aberta sobre a escrita! O prazer de a abrir!
Um beijo.

Era uma vez um Girassol disse...

Amigo Pires, surpeendeu-me o fim absolutamente inesperado deste teu conto (que pensei ser erótico...)!!!!
Maldade na cabeça desta avozinha, claro!
Parabéns, pela prosainteressante e muito bem escrita. Mas este facto não me surpreendeu.
Um grande abraço da flor

Lyra disse...

Olhem este sitio absolutamente delicioso para se desenhar, "desabafar" e descontrair :o)

Percebi que não é preciso sabermos desenhar bem para ilustrarmos ou "escrevermos" o que nos vai na alma através do desenho...E às vezes é bem mais fácil desenharmos o que nos vai na alma em..."silêncio"

E podem sempre adicionar o desenho ao vosso blog ou enviá-lo por e-mail a alguém.

www.sketchtag.com - visitem - vale mesmo a pena! Divirtam-se!


Até breve.

;O)

Anónimo disse...

um gato "quase-humano". só lhe falta falar...lol

muito bem escrito. bela cosntrução da personagem - a"dona do gato"

nice post

Paula Viotti disse...

Falta aqui uma lágrima ou outra.

Beijo

Frioleiras disse...

hoje andei por aqui.............
revivendo..
o mundo dos blogs.............

(saudades dos tempos em que o face não tinha ainda... «roubado» muito do tempo

da net...............
)

Luma Rosa disse...

Um gato, oras!!

Mas que coisa!! Me enganou, certamente!

Beijus,

frioleiras disse...

hoje chove. sabe bem!

Lyra disse...

"Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos. Enquanto o amor passa, a amizade volta, mesmo depois de ter adormecido um certo tempo."

Já tinha saudades.
Beijinhos e até breve!

Lyra ;)

Lyra disse...

"Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos. Enquanto o amor passa, a amizade volta, mesmo depois de ter adormecido um certo tempo."

Já tinha saudades.
Beijinhos e até breve!

Lyra ;)

© Maria Manuel disse...

é a primeira vez que chego ao seu blog e gostei de ler. espero que a Janela do Pensamento tenha continuação :)

abraço, José Pires!

Tulip disse...

Vim espreitar o espreitador :)
- deixo "quisses", e um beijinhu!