Agostinho da Silva era um homem com vários interesses, entre eles, a literatura francesa do século XIX. Nos estudos dos clássicos que publicou, num deles sobre Zola, termina com este pensamento que me permito dizer bem, mil vezes:
"Do caso Zola se pode tirar também uma conclusão interessante para uso da crítica científica: a de que é excelente não se guiar ninguém pelas declarações que os artistas fazem sobre si próprios e sobre as suas obras; de todos os que as lêem são eles os mais sujeitos a enganarem-se quando procuram formular juízos de valor: porque pretendem raciocinar, fazer pensamento discursivo, sobre o que foi puramente estético; e porque pretendem, sobretudo, apontar a sua obra como um produto de raciocínio obedecendo a princípios e a fins. O que é quase sempre falso" - Estudos e Obras Literárias da Âncora Editora p.360.
Tempos atrás, no lançamento do livro de um amigo, muito se disse e muitas interpretações se ouviram a quem se pronunciou. No final, o autor, em roda de amigos confidenciava: não supunha ter escrito o livro de que falaram. Não o fez em tom de zombaria, antes o contrário, confirmando que uma obra não se esgota quando o seu autor a termina.
Reflectindo sobre as palavras que uma querida amiga em tempos me escreveu, concluí que uma obra, qualquer obra, nunca está completa; passa a ter outras histórias que são as interpretações que cada um lhe faz, e isto justifica-se essencialmente porque o ponto de partida não é o mesmo da chegada. Ou seja: um artista comunica com os outros por uma linguagem diferente, seja a do discurso escrito, das tintas, da pedra... e fá-lo por sentir a urgência de “dizer” algo que de outra forma não é capaz, por sentir a insuficiência das palavras procura imagens ou texturas ou sons... criada a obra, ela passa a ter vida própria e uma lógica própria, ultrapassa o criador retendo deste a assinatura e o desejo de algo. Tentar dizer algo “sobre”, seria quase o mesmo que calar um filho, considerá-lo mudo e incapaz de falar de si e do mundo.
A obra, qualquer obra, tem vida própria, ganha essa vida ainda antes de acabada, quando “diz” como quer ser... um quadro pede cores e traços, um texto foge ao traçado inicial quando as palavras se impõem como uma força que escapa ao controle. O raciocínio a que o autor pretende obedecer escapa-lhe desde logo, nunca lhe tomou as rédeas, antes foi tomado por elas e é preciso ouvir a obra falar, escutar o que tem para dizer.
O autor a falar da sua obra... a obra a falar do seu autor... um diálogo de surdos porque o cruzamento das vozes é enorme e, no entanto, fazemos silêncio para ouvir e tentar perceber.
Claro que nem sempre isto acontece, e então o “leitor” descobre-se no autor e algumas vezes o inverso é também verdadeiro, porque a arte, tem vida própria e abre mundos não sonhados, para quem a cria e para quem a recebe.
Claro que nem sempre isto acontece, e então o “leitor” descobre-se no autor e algumas vezes o inverso é também verdadeiro, porque a arte, tem vida própria e abre mundos não sonhados, para quem a cria e para quem a recebe.
Posto isto, recordo as palavras que um amigo escreveu na época em que os artistas emergentes - avessos ao ambiente museológico como Nosferatu ao diurno - andavam às turras com o ensino académico da Arte lá por Paris. Escrevia ele então, no contexto da Arte apelidada de “contemporânea”, que era o que se andava a ensinar aos aspirantes a artistas nas Academias: falar de arte é uma pura perda de tempo. Acrescento um ponto de interrogação.
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1 comentário:
É fabulosamente verdade.
É incrível o modo como as obras ganham asas, como se excedem a si próprias, como nos fogem por entre os dedos quando pensamos que as controlamos.
É vertiginoso o sentimento que nos toma quando somos tocados por uma obra, quando num conjunto de cores, de palavras ou de sons (entre outros) todo um sentimento de insustentável tamanho nos nasce no peito, dando-nos vontade de o mandar cá para fora na forma de grito de espanto, de grito de êxtase, de grito de loucura!
Falar de arte é pura perda de tempo? Talvez seja impossível falar de arte como deveria ser falada, porque colocar a arte em palavras é, na minha opinião, impossível a um ser humano comum. Mas o ser humano comum não perde tempo a tentar falar dela.
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