BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Folha de São Paulo - 4Julho2006
Folha de São Paulo - 4Julho2006
A crise política em Timor, para além de ter colhido de surpresa a maior parte dos observadores, provoca algumas perplexidades e exige, por isso, uma análise menos trivial do que aquela que tem vindo a ser veiculada pela comunicação social internacional. Como é que um país, que ainda no final do ano passado teve eleições municipais, consideradas por todos os observadores internacionais como livres, pacíficas e justas, pode estar mergulhado numa crise de governabilidade? Como é que um país, que há três meses foi objecto de um elogioso relatório do Banco Mundial, que considerou um êxito a política económica do Governo, pode agora ser visto por alguns como um Estado falhado?
À medida que se aprofunda a crise em Timor Leste, os factores que a provocaram vão-se tornando mais evidentes. A interferência da Austrália na fabricação da crise está agora bem documentada e vem desde há vários anos. Documentos de política estratégica australiana de 2002 revelam a importância de Timor Leste para a consolidação da posição regional da Austrália e a determinação deste país em salvaguardar a todo o custo os seus interesses. Os interesses são económicos (as reservas de petróleo e gás natural estão calculadas em trinta mil milhões de dólares) e geo-militares (controlar rotas marítimas de águas profundas e travar a emergência do rival regional: a China). Desde o início da sua governação, o primeiro-ministro timorense, Mari Alkatiri, um político lúcido, nacionalista mas não populista, centrou a sua política na defesa dos interesses de Timor, assumindo que eles não coincidiam necessariamente com os da Austrália. Isso ficou claro desde logo nas negociações sobre a partilha dos recursos do petróleo em que Alkatiri lutou por uma maior autonomia de Timor e uma mais equitativa partilha dos benefícios. O petróleo e o gás natural têm sido a desgraça dos países pobres (que o digam a Bolívia, o Iraque, a Nigéria ou Angola).
E o David timorense ousou resistir ao Golias australiano, subindo de 20% para 50% a parte que caberia a Timor dos rendimentos dos recursos naturais existentes, procurando transformar e comercializar o gás natural a partir de Timor e não da Austrália, concedendo direitos de exploração a uma empresa chinesa nos campos de petróleo e gás sob o controlo de Dili.
Por outro lado, Alkatiri resistiu às tácticas intimidatórias e ao unilateralismo que os australianos parecem ter aprendido em tempos recentes dos seus amigos norte-americanos. O Pacífico do Sul é hoje para a Austrália o que a América Latina tem sido para os EUA há quase duzentos anos. Ousou diversificar as suas relações internacionais, conferindo um lugar especial às relações com Portugal, o que foi considerado um acto hostil por parte da Austrália, e incluindo nelas o Brasil, Cuba, Malásia e China.
Por tudo isto, Alkatiri tornou-se um alvo a abater. O facto de se tratar de um governante legitimamente eleito fez com que tal não fosse possível sem destruir a jovem democracia timorense. É isso que está em curso.
Uma interferência externa nunca tem êxito sem aliados internos que ampliem o descontentamento e fomentem a desordem. Há uma pequena elite descontente, quiçá ressentida por não lhe ter sido dado acesso aos fundos do petróleo. Há a Igreja Católica que, depois de ter tido um papel meritório na luta pela independência, não hesitou em pôr os seus interesses acima dos interesses da jovem democracia timorense ao provocar a desestabilização política com as vigílias de 2005 apenas porque o governo decidiu tornar facultativo o ensino da religião nas escolas.
Toleram mal um primeiro-ministro muçulmano, mesmo laico e muito moderado, porque o ecumenismo é só para celebrar nas encíclicas.
E há, obviamente, Ramos Horta, Prémio Nobel da Paz, um político de ambições desmedidas, totalmente alinhado com a Austrália e os EUA e que, por essa razão, sabe não ter hoje o apoio do resto da região para a sua candidatura a Secretário-Geral da ONU. Foi ele o responsável pela passividade chocante da CPLP (Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa) nesta crise. A tragédia de Ramos Horta é que nunca será um governante eleito pelo povo, pelos menos enquanto não afastar totalmente Mari Alkatiri. Para isso, é preciso transformar o conflito político num conflito jurídico, convertendo eventuais erros políticos em crimes e contar com o zelo de um Procurador-Geral para produzir a acusação. Daí que as organizações de direitos humanos, que tão alto ergueram a voz em defesa da democracia de Timor, tenham agora uma missão muito concreta a cumprir: conseguir bons advogados para Mari Alkatiri e financiar as despesas com a sua defesa.
E que dizer de Xanana Gusmão? Foi um bom guerrilheiro e é um mau presidente. Cada século não produz mais que um Nelson Mandela. Ao ameaçar renunciar, criou um cenário de golpe de Estado constitucional, um atentado directo à democracia por que tanto lutou. Um homem doente e mal aconselhado, corre o risco de hipotecar o crédito que ainda tem junto do povo para abrir caminho a um processo que acabará por destruí-lo.
Timor não é o Haiti dos australianos, mas, se o vier a ser, a culpa não será dos timorenses. Uma coisa parece certa, Timor é a primeira vítima da nova guerra-fria, apenas emergente, entre os EUA e a China. O sofrimento vai continuar.
14 comentários:
querido Pires...não posso estar mais de acordo....
bem observado.
(por isso é que o meu amigo jab vai p Timor defender Alkatiri).
coisas subterrânas (verdes verdinhas) estão sempre a crescer...
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obrigada pelas palavras no Piano...
:) :)
imerecidas mas que fazem sorrir.
beijo.
e achas que vamos para o terceiro lugar????
Excelente artigo e uma explicação clara e lucida dos factos ocorridos.
um abraço
Pires,
Obrigado por ter divulgado este excelente artigo. De outra maneira não o teria lido.
Um abraço
Isa!
Somos dois, achei a análise muito boa, porque é muito elucidativa de todo o processo.
Espero que o teu amigo Jab faça um bom trabalho que sei muito difícil, já que, o processo que está em marcha pretende a destruição de Alkatiri e da FRETILIN antes das próximas eleições.
Quanto às palavras no Piano, são merecidas sem dúvida alguma.
Sobre o jogo de hoje que para mim é uma violência e não deveria existir, tanto me faz o 3º ou o 4º.
Abração.
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Kaos e Psevem!
E interessante para aqueles que possam pensar, serem os jornalistas portugueses que se debruçaram sobre o problema, tendenciosos.
Assim, comparando o que se escreve por cá, com outras opiniões, creio que não restam dúvidas.
Abração.
são as saudades....nunca mais chega domingo...e como sei que ele vai à net...quiz mimá-lo...ainda mais...
:)
(coisas de m. tardia..)
:)))
obrigada...:)
Uma mente lúcida, produz um esclarecimento e análise clara dos acontecimentos. Um amigo como tu, publica o artigo partilhando-o com todos nós...
Abraço forte
alkatiri declarou finalmente em entrevista a jornais australianos essa mesma opinião... de que todo o "golpe presidencial" foi orquestado por camberra (na minha opinião, a partir do seu agente na própria cama do presidente).
E estes acontecimentos só revelam a crueza do espírito anglo-saxão: mecanicista, economicista e desprovido de outros valores "Morais" que não sejam os do enriquecimento financeiro...
E a História ainda fará juz à figura ímpar que foi Alkatiri...
E ao turvo e interesseiro papel subterrâneo cumprido pela Igreja timorense em todo este processo.
excelente artigo sim senhor. Foi excelente teres colocado aqui para que muito o leiam e se apercebam da triste realidade
Abraços
Ali abaixo não concordo. Não acabou o sonho Português.
Já aqui a história tem provado que sim.
Entre duas potências é: " ou estás quietinho ou levas no focinho..." sobretudo quando s história desse povo é ainda débil.
Abraço e ânimo.
:)
Your-shell
Voltei e deixo beijinhos
Sabe de uma Pires?
Acho que preciso ser mais como você.
Me preocupar mais com o mundo e menos comigo.
Beijos.
Admiro o Boaventura Sousa Santos mas tenho azias quando penso num trabalho que tive que fazer para a faculdade acerca da sociedade providência... A escrita dele por vezes consegue dar-me cabo do juízo! :)
Abraço
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